O custo do “aceito”: o que sua empresa concede às plataformas digitais?

Marketing

28 de outubro de 2025

O custo do “aceito”: o que sua empresa concede às plataformas digitais?

Atualização nos termos de uso do CapCut acende alerta para a gestão de riscos e a proteção da propriedade intelectual

No dinâmico universo do marketing digital, a agilidade é a moeda que mais vale. Ferramentas que prometem otimizar a criação de conteúdo, como a popular plataforma de edição de vídeos CapCut, tornaram-se onipresentes, integradas ao fluxo de trabalho de agências, startups e até de grandes corporações. Com uma interface intuitiva e um robusto leque de funcionalidades “gratuitas”, o aplicativo, pertencente à gigante de tecnologia ByteDance, consolidou-se como uma solução quase padrão para a produção de vídeos para TikTok, reels e shorts. Contudo, uma recente atualização em seus termos de serviço, implementada em meados de 2025, expôs uma realidade desconfortável, lançando-nos um alerta: qual é o verdadeiro preço da conveniência? (CapCut, 2025; TechRadar, 2025).

Em 12 de junho de 2025 a CapCut publicou alterações em seus Termos de Uso que passaram a explicitar uma licença ampla e royalty-free sobre o conteúdo enviado pelos usuários, e a empresa comunicou essas mudanças via seus canais oficiais. Dada a escala da plataforma, que já é apontada por veículos especializados (Business Insider, 2025; Influencer Marketing Hub, 2024) como tendo ultrapassado a marca de mais de um bilhão de downloads globalmente, as mudanças repercutem em extensivamente e impactam tanto criadores individuais quanto times e empresas que utilizam a ferramenta em fluxos profissionais.

O episódio serve como um estudo de caso fundamental para gestores e líderes. Ele revela uma tensão crescente entre a velocidade exigida pelo mercado e a diligência necessária para proteger os ativos mais valiosos de uma empresa: sua propriedade intelectual, seus dados e sua reputação. Este artigo propõe uma análise aprofundada das implicações estratégicas por trás de um simples clique no botão “Aceito”, demonstrando a necessidade urgente de um novo playbook para a governança da comunicação digital.

Decodificando a letra miúda

Para compreender a dimensão do risco, é preciso dissecar a linguagem jurídica do contrato de adesão do CapCut, um clássico modelo “take-it-or-leave-it”, e confrontá-la com a sólida legislação brasileira. Quatro cláusulas se destacam por sua natureza controversa.

A primeira, e mais alarmante, é a que estabelece a licença de uso. Ao fazer o upload de qualquer conteúdo, o usuário concede à plataforma uma “licença mundial, perpétua, irrevogável, isenta de royalties e sublicenciável”. Na prática, isso significa que a ByteDance adquire o direito de usar, modificar, reproduzir, distribuir e até mesmo comercializar o conteúdo do usuário (incluindo vídeos privados e rascunhos não publicados) para sempre, em qualquer lugar do mundo, sem a necessidade de uma nova autorização ou de qualquer compensação financeira. Tal cessão irrestrita de direitos entra em rota de colisão com a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998), que protege os direitos morais do autor, e com o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que veda cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.

O segundo ponto de atrito é a prerrogativa de modificação unilateral dos termos e funcionalidades. A plataforma se reserva o direito de alterar preços e serviços a qualquer momento, com aviso prévio mínimo. Esta prática desafia os incisos X e XIII do artigo 51 do CDC, que proíbem alterações arbitrárias que desequilibrem a relação contratual, oferecendo pouca ou nenhuma margem de negociação ao usuário.

Em terceiro lugar, a cláusula de limitação de responsabilidade é particularmente notória. Em caso de falhas, perda de dados ou outros danos, a plataforma limita sua indenização a um valor simbólico (o total pago nos últimos 12 meses, em caso de usuário com assinatura Pro, ou US$ 50). Trata-se de uma tentativa de se eximir de responsabilidades que, segundo o CDC, são inerentes ao fornecimento do serviço, anulando na prática o direito à reparação por danos.

Por fim, a imposição de foro e arbitragem compulsória em Singapura, com processos conduzidos em inglês, cria uma barreira jurídica e financeira quase intransponível para a esmagadora maioria dos usuários e empresas brasileiras. Essa cláusula, que restringe o acesso ao Poder Judiciário nacional, é passível de declaração de nulidade quando impede o acesso do consumidor brasileiro à Justiça, entendimento recentemente reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao decidir que a eleição de foro estrangeiro em contrato de adesão pode ser considerada nula se representar obstáculo ao acesso do consumidor à Justiça (STJ, 2025).

O efeito dominó

Quando essas cláusulas abstratas são aplicadas à rotina de um negócio, os riscos se tornam tangíveis e multifacetados. Para um gestor de marketing, as implicações vão muito além de uma disputa legal individual.

Imagine um cenário comum: uma startup de tecnologia financeira (fintech) utiliza o CapCut para criar um vídeo explicativo sobre uma nova funcionalidade de seu aplicativo. O vídeo contém o logotipo da empresa, a interface do software (que é um ativo intelectual), a imagem de colaboradores e dados de mercado.

Ao carregar esse material, a empresa pode estar, contratualmente, licenciando todos esses elementos para a ByteDance. Esse conteúdo pode ser legalmente reutilizado em um anúncio de um concorrente na Ásia, usado para treinar um modelo de inteligência artificial de um terceiro ou simplesmente vazar, comprometendo um lançamento estratégico. A responsabilidade por qualquer uso indevido de elementos de terceiros no vídeo (como uma trilha sonora não licenciada) recai, ainda, integralmente sobre o usuário, e não sobre a plataforma.

O perigo se estende à gestão da marca e ao relacionamento com o cliente. Campanhas de User-Generated Content (UGC), que incentivam clientes a criar e compartilhar suas experiências com um produto, perdem seu valor estratégico. O conteúdo criativo e autêntico gerado pelo público, ao ser editado e postado através dessas ferramentas, pode ter seus direitos primários transferidos para a plataforma, privando a marca de utilizar seu próprio capital social.

Do ponto de vista da governança corporativa, o fenômeno do “Shadow IT” – em que equipes adotam tecnologias sem a supervisão do departamento Jurídico ou de TI – floresce nesse ambiente. A definição e os riscos associados ao Shadow IT são amplamente documentados por analistas de mercado (Gartner, s.d.), que alertam para a necessidade de visibilidade e controle sobre software e serviços usados fora do domínio da TI.

Da mesma forma, frameworks de gestão de risco digital e recomendações de governança apresentados por consultorias como a McKinsey reforçam a necessidade de inventário, classificação de riscos e remediação sistemática como práticas essenciais para mitigar exposição operacional e reputacional (McKinsey & Company, 2025).

A facilidade de acesso a essas ferramentas cria uma vulnerabilidade silenciosa, expondo a organização a riscos que a alta liderança nem sequer mapeou, que vão desde a violação de dados (considerando a coleta extensiva de informações pela plataforma) até a perda de segredos comerciais.

Da reação à ação estratégica

A resposta a esse desafio complexo não pode ser a paralisia. Proibir o uso de ferramentas inovadoras é contraproducente. A solução reside na criação de uma cultura de segurança digital e na implementação de um “playbook criativo” interno, um guia de governança que alinhe as equipes jurídica, de marketing e de tecnologia da informação.

O primeiro passo é realizar uma auditoria de ferramentas digitais (Gartner; McKinsey & Company). Esse processo envolve mapear todos os softwares utilizados, analisar seus termos de serviço, avaliar os riscos de cada um e classificá-los segundo níveis de segurança. Uma ferramenta pode ser considerada segura para uso geral, enquanto outra pode ser restrita a projetos internos não confidenciais, e uma terceira, terminantemente proibida.

Com base nessa auditoria, o passo seguinte é desenvolver políticas de uso claras e acessíveis. Em vez de um documento jurídico intimidador, a política deve ser um guia prático que oriente o colaborador sobre o que pode e o que não pode ser feito.

Por exemplo: “Para vídeos de campanhas externas com ativos de marca, utilizar apenas o software licenciado [Nome do Software A]. Para edições rápidas de conteúdo não-sensível para redes sociais, as ferramentas [B e C] são permitidas. Para material confidencial, nenhuma ferramenta de edição on-line deve ser utilizada”.

O terceiro pilar é o treinamento contínuo. Não basta criar as regras; é preciso que as equipes compreendam o motivo por trás delas. Workshops que simulem os riscos e demonstrem as implicações práticas de um vazamento de dados ou da perda de propriedade intelectual são muito mais eficazes do que a simples comunicação de uma nova norma.

Por fim, é fundamental que a liderança encare a aquisição de alternativas seguras não como um custo, mas como um investimento estratégico em mitigação de riscos e proteção de ativos. O mercado oferece soluções profissionais que garantem a propriedade integral do conteúdo e a segurança dos dados.

Dessa forma, segue abaixo um checklist prático para utilizar plataformas similares de maneira segura:

• Revisar os termos de uso antes de adotar novas plataformas: ver cláusulas de licença, sublicenciamento, foro e limitação de responsabilidade;
• Evitar uso de ferramentas “gratuitas” para material estratégico ou confidencial – prefira software licenciado quando o ativo for sensível;
• Fazer inventário (auditoria) de todas as ferramentas usadas pela equipe (mapear Shadow IT) e classificar por risco;
• Definir políticas internas claras (quem pode usar o quê, em quais contextos) e rotas de aprovação para material com ativos de marca;
• Implementar treinamentos práticos e simulações de risco (workshops sobre vazamento, perda de IP e impacto reputacional);
• Exigir cláusulas contratuais mínimas com fornecedores (garantia de não-expropriação de direitos morais/autoria, obrigação de notificação em caso de vazamento);
• Revisar cláusulas de foro e arbitragem: quando houver cláusulas estrangeiras, avaliar a nulidade ou práticas defensivas segundo a jurisprudência brasileira atual;
• Priorizar soluções que garantam controle e registro de autoria (metadados, hashes, backups locais) para preservar provas em caso de disputa.

O caso CapCut é um sintoma emblemático de uma realidade inescapável na economia digital: nada é verdadeiramente gratuito. O preço da conveniência é frequentemente pago com a cessão de direitos e a exposição a riscos que podem comprometer a sustentabilidade de um negócio. A agilidade, tão celebrada no marketing moderno, não pode servir de pretexto para a negligência estratégica. Clicar no botão “aceito” sem a devida análise é, em si, um ato de gestão com consequências legais e patrimoniais. A verdadeira inovação, portanto, reside não apenas na habilidade de criar campanhas criativas e impactantes, mas também na sabedoria de conceber, executar e proteger esses ativos de forma segura e soberana, garantindo que o controle da narrativa permaneça onde deve estar: nas mãos de quem a criou.

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Quem publicou esta coluna

Fiona Maria

Analista de Marketing no Pecege, apaixonada por filmes e por todas as formas de arte visual. Profissional multidisciplinar que atua na intersecção entre Comunicação, Marketing, Gestão de Projetos Criativos e Direito Digital. Pós-graduada em Direito do Entretenimento e Mídia, com formação em Cinema e Produção Audiovisual.

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