Bobbie Goods, morango do amor, tendência da chupeta: as plataformas como infraestrutura de consumo

9 de setembro de 2025

5 min de leitura

Descoberta, produção, distribuição e compra acontecem no mesmo circuito, e cada novo pico treina o sistema para o próximo

Posso até parecer atrasada falando desses assuntos, mas não estou. Se há algo que as redes sociais têm nos ensinado é que a relevância não se mede por “quem postou primeiro”, mas por quem entendeu como a onda se forma, propaga e converte em comportamento. Em alguns casos, em venda.

O que proponho para este artigo é pensarmos em alguns fenômenos recentes que tomaram conta das redes sociais e dos quais, com certeza, você já ouviu falar: o livro de colorir Bobbie Goods, o fenômeno viral do morango do amor, a tendência da chupeta para adultos e a reencarnação “memética” e icônica de Odete Roitman, não como curiosidades do feed, mas como evidências de que as plataformas deixaram de ser mídia para se tornarem infraestrutura de consumo, quer seja do conteúdo em si, quer seja do produto por trás da tendência. Nelas, descoberta, produção, distribuição e compra acontecem no mesmo circuito, e cada novo pico treina o sistema para o próximo.

As plataformas viraram uma infraestrutura de consumo porque reduzem o caminho entre ver, desejar e agir. O feed algorítmico “for you” (FY) do TikTok, o “reels/explorar” do Instagram e o “shorts” do YouTube colocam o conteúdo na frente de pessoas que ainda nem são seguidoras, aumentando o fator descoberta”.  

Do lado da produção, os próprios aplicativos oferecem modelos e efeitos que deixam tudo no formato certo sem muito esforço técnico: templates prontos, legendas automáticas, narração (voice-over), tela verde (green screen), aceleração do vídeo (time-lapse) e recursos de resposta como dueto (que permite criar um vídeo lado a lado com outro vídeo de outra pessoa). Quando esse material nasce em vídeos fáceis de copiar, ele ganha escala com formatos repetíveis como ASMR (Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano, que é o apelo do som e da textura), POV (point of view), dentre vários outros, o que multiplica o alcance de forma orgânica.

A conversão fica colada no conteúdo, porque o clique está mais próximo: pode ser dado por um link direto, por uma DM (mensagem privada) ou pela loja nativa da plataforma. Isso tudo encurta o percurso entre gostar e comprar ou pedir informação. E tudo isso volta em dados simples de ler: retenção nos primeiros 10 segundos, taxa de cliques, salvamentos, compartilhamentos e remixes.

Esses dados ajudam a repetir o que funcionou e a ajustar o que não funcionou na próxima publicação. O resultado é um funil compacto: ver, desejar e agir acontecem em minutos. Não estamos falando apenas de ganhar audiência. Estamos falando de uma logística de atenção que culmina num comportamento, seja de compra seja de compartilhamento.

Nos exemplos desta coluna, dá para ver esse mecanismo de ponta a ponta. No “morango do amor”, o close e o som da casquinha (ASMR) prendem a atenção, e o perfil já deixa link e DM à mão para cardápio e pedidos. O salto do feed para o WhatsApp ou para o delivery acontece ali mesmo. Em Bobbie Goods, o vídeo acelerado “colore comigo”, com o nome das cores na tela, cria um ritual simples de reproduzir; o vídeo aponta para o link do livro ou do kit, e os seguidores passam a publicar as próprias versões, alimentando mais descobertas.

Sobre Odete Roitman, as falas icônicas viram soundbites (trechos curtos da fala da personagem) para lip sync (sincronia labial) e reações. Os perfis deixam um caminho fixo e permanente para os recortes curtos de vídeo: no Instagram, com links na bio ou nos destaques; no TikTok, através de comentários fixados, vídeos e links na bio. O YouTube usa os comentários e a descrição com link, e o X, o post fixado com link. É essa combinação — que une descoberta algorítmica (processo em que os conteúdos são encontrados por novos usuários), produção facilitada, formato copiável, compra em um clique e dados para ajustar e afinar novos vídeos — que transforma as redes em infraestruturas de consumo.

Voltemos a Bobbie Goods. À primeira vista, são livros de colorir fofos com uma estética aconchegante. Mas o que faz esse conteúdo escalar não é apenas a delicadeza do traço, é a forma como ritualiza o tempo. Um formato simples o suficiente para qualquer pessoa reproduzir sem medo, o que transforma espectadores em coautores. Quando esse gesto vira hábito compartilhável, o algoritmo reconhece a recorrência e promove a recompensa com mais entrega. Por similaridade, recomenda outros vídeos de colorir, criando uma “prateleira infinita” que sustenta a descoberta.

Do lado comercial, a ponte está instalada: livros, kits, canetas, papéis, tudo a um clique de distância. O afeto vira carrinho não porque alguém “empurrou venda”, mas porque a experiência foi desenhada para participação, e a infraestrutura encurtou o caminho.

No caso do “morango do amor”, o motor é sensorial. Como mencionado anteriormente, o barulho do “crock” funciona como gatilho de atenção e de desejo. O ritual é hipnótico: derreter, banhar, endurecer, quebrar. Não é preciso explicar nada, pois o prazer é evidente. O formato pede close e áudio limpo; é fácil de replicar em cozinhas reais; a audiência reconhece a sequência e espera o clímax.

Em questão de horas, a repetição cria massa crítica: duetos com reações, tutoriais, comparações, memes. A transição do feed para a compra é quase natural. Quando a praça permite, há fila na vitrine física. Foi o que aconteceu com várias confeitarias. E aqui aparece a diferença entre barulho e resultado: quem tinha preço, estoque, resposta automática e meios de pagamento prontos capturou a janela; quem não tinha, virou espectador do próprio pico. O ponto não é “ter sorte com a trend”, mas já operar com conteúdo e conversão colados desde o início.

Odete Roitman é mais um exemplo. A personagem reaparece no remake com camadas que dialogam com o tempo das redes: frases recortáveis, ironia cirúrgica, cenas que se encaixam em qualquer piada contemporânea. O fenômeno mostra um deslocamento importante: a novela pode oscilar na TV aberta e, ao mesmo tempo, dominar a rede social, levando o sucesso da trama para outro canal.

O valor deixa de caber em uma métrica única (audiência da TV) e se distribui em portfólios de atenção: tempo visto, replicação de cortes, menções, buscas por nome, apropriações criativas. A audiência da TV alimenta as redes sociais que, por sua vez, alimentam a audiência da TV. A novela Vale Tudo tem sido um sucesso dentro de todas as telas.

Cada tendência vira um ativo da plataforma, não um acidente feliz. É por isso que falar “depois do hype” não é chegar tarde: é olhar como o sistema está funcionando e como somos capturados para atuar dentro desse sistema.

A recente moda de chupetas para adultos ilustra como o algoritmo amplifica qualquer gesto que combine clareza emocional e repetição, inclusive quando a promessa é “alívio” para a ansiedade. O humor dos influenciadores acelera a difusão; o uso de chupetas por celebridades dissemina o fato; o e-commerce responde com oferta segmentada; e a conversa desliza, facilmente, para a normalização de um hábito que tem alertas psicológicos. Se plataformas são infraestrutura, marcas e veículos precisam ser reguladores de contexto: não dá para transformar tudo em visibilidade e validação automática.

Para os negócios, também é preciso aceitar que estratégia, aqui, significa testar e aprender em ciclos curtos, entendendo que o fio que liga tudo isso não é apenas o momento, é o mecanismo: apelo emocional, recursos nativos, formato imitável, conversão acoplada, dados de retorno. Porém, significa entender que nem todos os fenômenos que recheiam o nosso feed serão aproveitados dentro desse mecanismo. Nem toda trend deve ser reproduzida apenas pelo medo de ficar de fora.

Aqui, o que menos interessa é cravar a próxima trend; o que importa mais é construir estratégia para participar de qualquer uma que faça sentido para o negócio com coerência estética, com capacidade operacional e governança de risco, claro. E tem outra: nem todas as marcas optam por esse tipo de estratégia. Mas para todas, é fundamental compreender que plataformas são infraestrutura e funcionam baseadas em mecanismos de retenção, oferecendo recursos prontos para isso. Todo o resto, o buzz, o alcance, o “parece que todo mundo está falando disso”, é consequência.

Autor

Foto do Colunista

Silmara Regina de Souza

Mestre em Administração, consultora pelo Sebrae SP. Palestrante, conteudista, especialista em marketing e comunicação digital. Entusiasta da produção de conteúdo e do uso estratégico das redes sociais como canais de relacionamento e comunicação.

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