A inclusão dos surdos no trabalho: um desafio bilíngue e bicultural
25 de abril de 2025
17 min de leitura
DOI: 10.22167/2675-6528-2024037
E&S 2025, 6: e2024037
Paolla Lima Miranda e Cristiana Lara Cunha
O Brasil é composto por inúmeras culturas e línguas que constituem a diversidade da nação. Apesar dessa pluralidade, o multilinguismo e o multiculturalismo ainda estão em um processo vagaroso de reconhecimento e inclusão, pois a língua portuguesa é a única reconhecida como oficial no país. Este trabalho aborda a importância da legitimação das pessoas surdas e usuárias de Libras (Língua Brasileira de Sinais) como uma minoria linguística, assim como o impacto dessa compreensão na inclusão dos surdos no espaço laboral.
Usualmente, as percepções sobre as pessoas diagnosticadas com surdez ainda na primeira infância, independentemente da causa, são majoritariamente negativas, por fatores linguísticos e socioculturais. A respeito das representações sociais da surdez, Brito Júnior et al.[1] expressam que, culturalmente, a audição é avaliada como essencial para um indivíduo, resultando em descrença no que se refere ao potencial de desenvolvimento dos surdos. Os autores ressaltam que, por muito tempo, as pessoas surdas foram compreendidas como diferentes, incapacitadas e sem competência para cumprir papéis sociais.
Segundo Mottez[2], a expressão minoria linguística denota o uso de uma língua desconhecida pela maior parte da população e apreendida em grupos sociais. A lei n° 10.436/2002[3] reconheceu a Libras como um modo legítimo de expressão e comunicação nacional dos surdos, que foi regulamentado pelo decreto n° 5.626/2005[4]. No entanto, sua legitimação ainda é recente e levanta questionamentos a respeito dos reais avanços para a comunidade surda brasileira no que se refere à acessibilidade e inclusão.
O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, apontou que o Brasil tem cerca de 5% de surdos na população, estatística que expressa a importância de medidas inclusivas — assistidas por lei — e a necessidade de sensibilização social às vivências visuoespaciais dos surdos[5]. Logo, em termos trabalhistas, a Lei de Cotas nº 8213/1991[6] é uma ação afirmativa, que determina a contratação de pessoas com deficiência (PCD), com percentuais que variam de 2% a 5% em proporção ao número total de colaboradores das empresas com mais de 100 funcionários. Sua finalidade é reparar a segregação histórica sofrida por essas pessoas. Ao longo das mais de três décadas dessa ação, muitas organizações preencheram vagas apenas para cumprir exigências governamentais, o que implicou optar por tipos de deficiência sem estruturar políticas de diversidade e programas de desenvolvimento inclusivos e equânimes[7].
Diante disso, a hipótese deste estudo é de que a língua, a cultura e a identidade dos colaboradores surdos são desconsideradas pela gestão de pessoas, o que afeta negativamente a inclusão dessa minoria linguística. O objetivo geral deste trabalho é avaliar a percepção e a satisfação da comunidade surda com relação à empregabilidade e às ações de inclusão no Brasil.
Adicionalmente, o estudo tem como objetivos específicos levantar o panorama atual de empregabilidade dos surdos e identificar as barreiras linguísticas e culturais. A pesquisa é descritiva e foi dividida em um momento quantitativo e um qualitativo, com questionamento do público a ser conhecido e análise quantitativa dos dados obtidos[8].
Na primeira fase, o método utilizado foi o quantitativo, a fim de se levantar percentualmente os dados sociodemográficos, de empregabilidade, desenvolvimento profissional, níveis de satisfação e motivação, bem como a avaliação da comunidade surda a respeito da empregabilidade e das ações de diversidade e inclusão no mercado de trabalho.
A ferramenta de coleta de informações utilizada foi um questionário estruturado do Google Forms, incluindo um link no Youtube, em formato não listado, contendo a tradução das perguntas e alternativas em Libras, como emojis nas sentenças para torná-las mais visuais. A divulgação ocorreu em grupos do WhatsApp relacionados à comunidade surda e nas redes sociais.
O questionário aplicado foi dividido em quatro categorias: 1 – Dados sobre a deficiência auditiva (identidade e língua utilizada); 2 – Dados sociodemográficos (faixa etária, gênero, escolaridade e raça/etnia); 3 – Dados de empregabilidade (situação atual e cargo); 4 – Questionamentos sobre a satisfação e percepção laboral (inclusão, diversidade, acessibilidade, capacitismo, relacionamento e desenvolvimento).
A pesquisa foi realizada, no período de 25 de julho a 14 de agosto de 2023, com 108 respondentes, dos quais 90 possuíam os requisitos de inclusão para a amostra deste estudo (pessoas com deficiência auditiva, usuárias de Libras, inseridas na comunidade surda e que se identificam com a identidade surda). As respostas fornecidas foram contabilizadas percentualmente e inseridas em tabelas na ferramenta Excel. Para a análise, foram utilizados gráficos com as médias de frequência das respostas.
Na segunda fase, foi aplicada a metodologia qualitativa, a fim de coletar experiências, percepções, obstáculos, avanços e expectativas dos surdos em relação ao trabalho. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas em Libras com uma amostra de cinco surdos usuários de sinais, via ferramenta de videoconferência Zoom, no período de 8 a 17 de agosto de 2023.
Atualmente, a discriminação e o preconceito a respeito da capacidade das pessoas de desempenhar funções sociais em virtude da deficiência se denomina capacitismo; o anticapacitismo é o movimento de combate a esse preconceito. Strobel[9] esclarece que a comunidade surda é constituída por um grupo de pessoas que compartilham os mesmos propósitos e se organizam para alcançá-los, o que contempla os surdos e os ouvintes, tais como a família, amigos, ativistas da causa, intérpretes e quem mais atuar em prol dos direitos das pessoas surdas. A autora afirma que a cultura surda é o modo que o surdo compreende o mundo e o modifica para transformá-lo em um local acessível e habitável segundo as suas percepções.
A presente pesquisa contou, inicialmente, com a participação de 107 pessoas. No entanto, 94,39% (n=101) se identificaram como pessoas surdas, e 91,18% (n=93) afirmaram utilizar Libras como principal ou um dos principais meios de comunicação. O recorte do público-alvo contendo os critérios de inclusão (identidade e uso da língua de sinais) resultou em uma amostra final de 90 pessoas surdas.
Tabela 1. Características do perfil dos participantes
Identificação como pessoa surda | Frequência | Em percentual (%) |
Não | 6 | 5,61% |
Sim | 101 | 94,39% |
Principal meio de comunicação | Frequência | Em percentual (%) |
Libras | 37 | 41,18% |
Libras e português oral | 56 | 50,00% |
Português oral | 14 | 8,82% |
A legitimação da Libras como uma língua natural, com parâmetros internos e morfologia, é resultado de vários estudos linguísticos, principalmente os de William Stokoe, na década de 1960. Considerado o pai das Línguas de Sinais, o estudioso conseguiu comprovar cientificamente a sofisticação dos sinais.
A cultura surda considera a língua, as crenças, os costumes e os hábitos dos surdos, colaborando para a caracterização das identidades surdas e para o fundamento de suas comunidades. A autoafirmação dos surdos como sujeitos completos e de suas vivências é a surdidade, um aspecto cultural da comunidade surda propagado entre seus membros.
Historicamente, as barreiras atitudinais, sociais e comunicacionais enfrentadas pelas pessoas surdas em suas constituições como sujeitos impactam negativamente seu desenvolvimento sociocognitivo, acadêmico e profissional, impossibilitando o progresso pleno de seus potenciais e o acesso a um trabalho decente. Dessa forma, a surdidade, a autoestima e autoconfiança da comunidade surda são as ferramentas de transformação de contextos sociais historicamente desfavoráveis, mediante a propagação do conhecimento e a afirmação das características linguísticas e culturais da comunidade surda para a sociedade, destacando a pessoa além da deficiência. Entre os respondentes da presente pesquisa, 91,18% (n=72) afirmaram conhecer os próprios direitos como PCD no trabalho.
O período a partir de 1970 foi caracterizado por ações globais de grupos historicamente minorizados, como mulheres, pessoas com deficiência, populações negras, sexualidades e identidades diversas, entre outros, que se manifestaram e lutaram para garantir seus direitos humanos nos âmbitos sociais. Nessa perspectiva, Kymlicka[10] afirma que o conceito de equidade relacionado à inclusão social se ampliou através dos movimentos sociais que almejavam legitimação e justiça. O autor relata o estabelecimento de inúmeras iniciativas universais, como tratados, leis, ações e manifestações por parte da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional do Trabalho, que iniciaram a luta pela diversidade, equidade e inclusão[11].
A despeito de o setor de gestão de pessoas possuir um vasto campo acadêmico e de atuação profissional, as pautas sobre DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) ainda estão em fase de amadurecimento teórico e de aplicação prática. Schein[12] resume a cultura organizacional como uma coleção de princípios essenciais praticados pelos colaboradores e que servem como guias comportamentais e de funcionamento. O autor apresenta três pontos de percepção da cultura: artefatos visíveis, valores compartilhados e pressupostos básicos, classificando a cultura e a liderança como inseparáveis e as ações da empresa como consequência desses dois fatores.
Historicamente, a exclusão, a negação e a invisibilização social de minorias linguístico-culturais, como a comunidade surda, ocorre de forma implícita por instituições públicas e privadas, assim como nos campos do saber, em virtude do desconhecimento. A cultura organizacional é reflexo da cultura da sociedade em que está inserida, logo, é atravessada pelos preconceitos e discriminações dirigidas aos grupos minorizados, incluindo o de surdos.
O Guia para Inclusão de Pessoas com Deficiência do Instituto Ethos[13] cita a mudança da cultura organizacional na inclusão de PCD’s como um desafio no incentivo à diversidade, uma vez que a transformação da mentalidade dos colaborares é atravessada por vieses inconscientes e pré-conceitos a serem desconstruídos. Em conformidade com a avaliação sobre empregabilidade, diversidade e inclusão dos entrevistados nesta pesquisa, aspectos de uma cultura organizacional capacitista e excludente formaram as suas principais colocações.
Entre as respostas fornecidas pelos integrantes da amostra, os seguintes tópicos foram apontados: “dificuldade de comunicação”, abarcando o desconhecimento sobre Libras; “exclusão e preconceito”, destacando as percepções negativas e o capacitismo; “dificuldade no desenvolvimento profissional”, em virtude do não reconhecimento de suas habilidades e da alocação em cargos iniciais; “desafios na busca por oportunidades”, sobre dificuldades das empresas no recrutamento de candidatos com deficiência e comunicação ineficaz nos processos; “inclusão imperfeita”, destacando a necessidade de conhecimento, empatia e mudanças comportamentais.
Em termos de perfil, a amostra desta pesquisa contou com 90 respondentes e teve equilíbrio no quesito gênero, com 50,00% de homens e 50,00% de mulheres. A idade se concentrou na faixa de 30 a 49 anos, com 63,33% (n=57); quanto à identidade étnico-racial, 52,22% pessoas se declararam brancas (n=47); 67,78% (n=61) possuíam ensino superior; 68,89% (n=62) estavam empregadas; e 70,73% (n=58) ocupavam o cargo de auxiliar/assistente (Tabela 2).
Tabela 2. Características sociodemográficas
Gênero | Frequência | Em percentual (%) |
Feminino | 45 | 50,00 |
Masculino | 45 | 50,00 |
Faixa etária | Frequência | Em percentual (%) |
18 a 29 anos | 9 | 10,00 |
30 a 49 anos | 57 | 63,30 |
50 anos ou mais | 24 | 26,60 |
Escolaridade | Frequência | Em percentual (%) |
Ensino Fundamental | 1 | 1,10 |
Ensino Médio | 28 | 21,10 |
Ensino Superior | 34 | 37,70 |
Ensino Superior – Pós-Graduação/Mestrado/ Doutorado | 27 | 30,00 |
Identidade étnico-racial | Frequência | Em percentual (%) |
Amarelo | 5 | 5,50 |
Branco | 47 | 52,20 |
Pardo | 31 | 34,40 |
Preto | 7 | 7,70 |
Situação empregatícia atual | Frequência | Em percentual (%) |
Aposentado/Pensionista | 6 | 6,60 |
Autônomo | 10 | 11,10 |
Desempregado | 12 | 13,30 |
Empregado | 62 | 68,80 |
Cargo atual/do último emprego | Frequência | Em percentual (%) |
Analista | 12 | 15,00 |
Auxiliar/Assistente | 58 | 71,00 |
Sócio/Proprietário | 4 | 5,00 |
Supervisor/Coordenador/ Gerente | 8 | 10,00 |
A amostra dos cinco entrevistados (n=5) na segunda parte da pesquisa, a qualitativa (Tabela 3), é predominantemente feminina (n=4), com faixa etária entre 39 e 45 anos (n=4). Todos possuíam pelo menos o Ensino Médio completo e estavam empregados. A maioria ocupava os cargos de assistente administrativo (n=3).
Tabela 3. Características sociodemográficas dos entrevistados
Entrevistados | Gênero | Raça | Idade | Escolaridade | Situação de trabalho | Cargo |
E1 | Masculino | Pardo | 45 | EM | Empregado | Assistente adm. |
E2 | Feminino | Pardo | 43 | EM | Empregado | Assistente adm. |
E3 | Feminino | Preta | 39 | EM | Empregado | Assistente adm. |
E4 | Feminino | Preta | 24 | ES | Empregado | Jovem aprendiz |
E5 | Feminino | Branca | 42 | ES | Empregado | Analista de DP |
Nota: EM: Ensino Médio; ES: Ensino Superior; adm.: administrativo; DP: Departamento Pessoal
Os dados sociodemográficos e de empregabilidade dos participantes desta pesquisa confirmaram que, mesmo com formação superior, as pessoas surdas enfrentam desafios em se desenvolver profissionalmente, visto que a maioria ocupa cargos de níveis iniciais.
As Tabelas 3 e 4 apresentam, respectivamente, 68,89% (n=62) e 100% (n=5) dos surdos como empregados. Contudo, a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS)[14] apresentou as pessoas com deficiência como sendo 1,32% do total de vínculos ativos de trabalho no país. Entre os ativos, apenas 17,7% eram pessoas com deficiência auditiva.
A inclusão representa o processo de acolher e contemplar a diversidade. No entanto, dois conceitos se tornam significativos e decisivos ao se abordar ações inclusivas: a equidade e a igualdade. A igualdade remete a oportunidades iguais a pessoas diferentes e a equidade significa fornecer condições de acordo com as particularidades de cada grupo minorizado, segundo esclarece Escorel[15]. A equidade considera o contexto sócio-histórico dessas pessoas ao viabilizar os acessos às oportunidades e ao desenvolvimento de modo justo e ético, proporcionando, de fato, a inclusão.
Em concordância com essa ideia, as pessoas entrevistadas afirmaram considerar que estejam em desvantagem no que diz respeito à igualdade de oportunidades de trabalho. A seguir, destacam-se duas declarações dos entrevistados sobre esse tema: E2 – “geralmente, as pessoas acham que os surdos possuem dificuldades, que não são tão capazes como um ouvinte, elas não acreditam na igualdade de potenciais”; e E4: “os surdos realmente enfrentam dificuldades para se desenvolver profissionalmente, pois não há igualdade de oportunidades de crescimento no trabalho em comparação com os ouvintes”.
Bahia[16] afirma que a disponibilização predominante de vagas iniciais e de menor complexidade para pessoas com deficiência evidencia o preconceito presente no mercado de trabalho, além de desvalorizar as competências, capacidades e potencialidades desses profissionais. Os entrevistados por esta pesquisa compartilharam insatisfação com análise curricular, entrevistas, alocação em vagas iniciais e execução de tarefas simples, sem alinhamento entre o perfil do candidato surdo e a vaga, o que, segundo eles, gera frustração, desmotivação e adoecimento.
A pesquisa da Great Place To Work[17] sobre as Tendências de gestão de pessoas para o ano de 2023 apontaram que 45,1% das organizações estavam em estado de maturidade baixo sobre as temáticas de inclusão e diversidade. Além disso, a pesquisa apresentou cinco desafios em relação à diversidade que impactaram os resultados negativos. São eles: engajamento da liderança, processos inclusivos de recrutamento e seleção, identificação de profissionais qualificados dos grupos minorizados, capacitação interna em diversidade e inclusão e desenvolvimento profissional para gestão de profissionais dos grupos minorizados.
Para tornar as alternativas do questionário mais visuais, intuitivas e acessíveis, foram incluídos emojis nas opções, facilitando a compreensão e a expressão dos respondentes. Os resultados desta pesquisa no que se refere às ações de empregabilidade para pessoas surdas foram satisfatórios (Tabela 4).
Tabela 4. Sobre as ações de empregabilidade para pessoas surdas
A Figura 1 apresenta a média de satisfação dos surdos nas ações de empregabilidade e DEI nos seis eixos:
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Os participantes foram questionados a respeito de suas percepções sobre diversidade e inclusão de pessoas surdas no trabalho. As respostas partilharam ausência de acessibilidade, desenvolvimento e oportunidades iguais, inclusão e empatia. Além disso, as contribuições reforçaram a discrepância entre o discurso e a prática das empresas, bem como as barreiras e as dificuldades existentes, sobretudo, no acesso à informação e ao conhecimento técnico e de rotina no espaço laboral. Segundo Baker et al.[18], a incoerência entre discurso, imagem e prática sobre a diversidade mencionada nas entrevistas se denomina “Diversity Washing”.
Foram apresentadas no questionário aplicado afirmativas relacionadas ao uso de Libras e à cultura surda no trabalho. As respostas são retratadas na Tabela 5.
Tabela 5. Avaliação das afirmativas sobre Libras e cultura surda no ambiente de trabalho
A concordância nas quatro afirmativas é superior à discordância, denotando médias percentuais próximas apenas na terceira afirmativa. Dessa forma, as afirmativas “1. Há barreiras linguísticas e culturais no trabalho” e “3. Não há reconhecimento sobre Libras e a cultura surda” estão correlacionadas e contrapostas.
A relação das médias de concordância dos enunciados 1 e 3 representa contradição às médias superiores de satisfação nas ações de empregabilidade presentes na Figura 1, em especial, às de eficiência, de acessibilidade e de inclusão. Se há impedimentos e desconhecimentos, as ações não estão sendo, de fato, eficientes, acessíveis e inclusivas. Assim, a contraposição entre as médias de concordância e discordância das afirmativas 1 (35%) e 3 (23,33), respectivamente (Figura 2), possibilita a compreensão de que, embora algumas organizações reconheçam a Libras e a cultura surda, o rompimento das barreiras linguístico-culturais e de engajamento ainda é um desafio.
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Taylor[19] destaca que grande parte dos líderes é capaz de reproduzir os valores da empresa, porém, raros são os que conseguem atuar segundo o seu discurso. A entrevistada E5 afirmou: “Minha gerente passou a se interessar por Libras e acessibilidade (…). Porém, isso foi se perdendo e ela foi esquecendo”. Sobre acessibilidade e inclusão, a percepção da amostra foi dividida em tópicos (Tabela 6):
Tabela 6. Acessibilidade e inclusão no mercado de trabalho para surdos
A média próxima de satisfação e insatisfação nos eixos “Incentivo dos coordenadores”, “Preparação das empresas” e “Representatividade” se relaciona à ausência de ocupação da comunidade surda em posições de liderança e tomada de decisão. Essa informação sugere que as empresas ainda estão em processo de maturidade nas ações de diversidade, inviabilizando o desenvolvimento de carreira das pessoas surdas.
Algumas leis brasileiras foram constituídas para respaldar a necessidade de uma sociedade inclusiva e diversa, contemplando um ambiente de trabalho inclusivo e de apoio às pessoas com deficiência. Contudo, para muitas organizações a inclusão pode se converter em uma adversidade jurídica a ser resolvida, e não em uma prioridade estratégica.
Nessa perspectiva, a lei 13.146, denominada Lei Brasileira de Inclusão – LBI[20] esclarece que a discriminação em virtude da deficiência é produto da diferenciação, limitação ou segregação, de forma ativa ou passiva, em relação às pessoas com deficiência. A LBI expressa que a avaliação de deficiência necessita ser biopsicossocial, multiprofissional e interdisciplinar, testificando que as deficiências estão interligadas aos aspectos biológicos e psicossociais que influenciam a vida dessas pessoas.
Pereira[21] substitui o conceito estigmatizado e estereotipado da deficiência por “diversidade funcional”. Oriunda de estudos socioantropológicos, a expressão compreende a diferença e reconhece e empodera o funcionamento diferenciado de cada pessoa. A Figura 4 representa a média com que as pessoas entrevistadas identificaram a frequência e a ausência de capacitismo com relação às pessoas surdas no trabalho, apontando como raros ou nulos os episódios de capacitismo evidente.
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Strobel[9] diz que a sociedade reconhece a existência da cultura surda, mas não a conhece e valida, posicionando o surdo de forma que ele tenha que se adaptar e subordinar à cultura dominante. A entrevistada E4 afirmou: “os surdos estão sempre em desvantagem. O ouvinte tem a audição e o surdo fica sem saber de nada, atrasado no recebimento de informações”.
Conforme a diversidade funcional, é crucial considerar a identidade cultural dos indivíduos e as suas habilidades como válidas e funcionais. Portanto, desde o processo seletivo até os eventos da empresa, as pessoas com deficiência devem ser vistas como potências a ser reconhecidas e desenvolvidas, solidificando as relações de trabalho com base no respeito e na valorização das diferenças, tratando-as como enriquecedoras.
Após três décadas da implementação da Lei de Cotas (Brasil, 1991) e de recorrentes sensibilizações organizacionais a respeito da inclusão, a situação das pessoas com deficiência auditiva expressa avanços e limitações no espaço laboral. O cumprimento da lei pode ser um desafio para muitas empresas, em consequência de barreiras comunicacionais, atitudinais, sociais e físicas existentes em relação às pessoas surdas.
Uma nota técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos[22] expressa que a empregabilidade de pessoas com deficiência aumentou no período entre 2011 e 2021, mas ainda está muito abaixo do estimado, pois o cumprimento da Lei de Cotas está atrelado à fiscalização.
Em termos de satisfação e motivação, os entrevistados demonstraram predominantemente satisfação com relação ao trabalho, ao desenvolvimento profissional e à relação com colegas/superiores. Contudo, na inclusão, os percentuais de insatisfação e satisfação ficaram próximos (Figura 5).
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Conforme Barros e Marques[23], a comunidade surda enfrenta a ausência do acolhimento de suas necessidades na cultura ouvinte, provocando o sentimento de isolamento, solidão e sofrimento com a falta de comunicação acessível. Nessa perspectiva, os conhecimentos difundidos sobre recrutamento, seleção e desenvolvimento de pessoas surdas é escasso e pouco abordado na literatura e nas práticas organizacionais.
Para serem efetivas e proporcionarem um trabalho digno, as ações, a cultura e a liderança organizacional precisam se fundamentar na equidade e na inclusão. Uribe e Montoya[24] ressaltam que a inclusão social depende da garantia de equidade às pessoas com deficiência, por intermédio do protagonismo no combate às divergências e restrições impostas pela sociedade. À vista disso, é preciso conceder espaço para a comunidade surda se posicionar sobre o que almeja para si e sobre quais ações são importantes para a sua inclusão.
A pergunta “Qual é o seu sonho para o futuro das organizações sobre a inclusão dos surdos?” foi efetuada no encerramento das entrevistas. As respostas apresentaram os seguintes pontos: “priorização do conhecimento em Libras e sobre a cultura surda”; “empatia” com os funcionários surdos; “aumento da visibilidade dos surdos”; “desenvolvimento profissional”; e “igualdade de potencial”.
Um ambiente organizacional saudável e seguro para pessoas com deficiência remete à um conjunto de práticas culturais, estruturais, atitudinais e de comunicação que valorizem a diversidade e assegurem a inclusão. Desse modo, os sentimentos de pertencimento, satisfação e motivação das pessoas surdas estão correlacionados à crença e ao investimento da gestão de pessoas nas capacidades e habilidades que possuem, incentivando processos equânimes, conhecimento linguístico-cultural, análise do perfil profissional, aprendizagem contínua e relações empáticas.
A limitação da pesquisa descritiva quantitativa refere-se à objetividade das respostas dos temas abordados. O nível de satisfação dos participantes a respeito da empregabilidade e das ações de DEI nos quatro blocos do questionário aplicado não foi pleno, expressando a necessidade de um constante empenho na transformação da cultura organizacional e das práticas inclusivas e equânimes.
Segundo os entrevistados, em virtude da principal barreira, a comunicação, torna-se difícil expressar no ambiente de trabalho os seus desejos, opiniões e insatisfações. Esse dado, correlacionado aos resultados obtidos no questionário aplicado, evidencia um cenário de resignação e contentamento dos surdos com as ações de DEI, assim como de uma evidente satisfação do cenário de empregabilidade atual dos surdos em comparação ao que era nos primeiros anos da implementação da Lei de Cotas.
Esta pesquisa possibilitou a compreensão das percepções da comunidade surda sobre a própria empregabilidade, ressaltando a predominância de um capacitismo velado do mercado, intrínseco à estrutura social. As entrevistas viabilizaram a afirmação de que há desigualdade no desenvolvimento profissional das pessoas surdas e insatisfações com os processos de inclusão organizacional, visto que não são ofertadas oportunidades de progresso no trabalho, bem como há pouquíssimos surdos em cargos de maior complexidade e liderança.
As pessoas surdas necessitam de políticas e normas organizacionais que as contemplem, por meio de práticas inclusivas, recursos de acessibilidade, treinamentos e visibilidade perante a comunidade. A transmissão das características da cultura surda e da língua de sinais no âmbito organizacional é um papel da comunidade surda, assim como a receptividade da gestão de pessoas à comunidade é imprescindível para a inclusão desse grupo.
Este estudo contribuiu para o levantamento e descrição de dados atuais de empregabilidade das pessoas surdas, cruciais para a compreensão do contexto linguístico-cultural que perpassa a inclusão da comunidade e a atuação da gestão de pessoas. Sendo assim, colabora para futuras ações de empregabilidade, diversidade e inclusão mais equânimes, eficazes e, principalmente, para o conhecimento, protagonismo e representatividade da comunidade surda na sociedade.
Referências
[1]Brito Júnior, A.; Brito, M.D.O.; Freire, K.M.A.; Silva, H.F.; Brazil, S.S. 2019. Inclusão de surdos em uma determinada empresa na cidade de Parnaíba-PI: estudo de caso. RACE-Revista da Administração 5: 361-375. Disponível em: https://revistas.cesmac.edu.br/administracao/article/view/1146. Acesso em: 22 abr. 25.
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[3]Brasil. 2002. Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS e dá outras providências. Diário Oficial: República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10436.htm. Acesso em: 15 de fev. de 2023.
[4]Brasil. 2005. Decreto nº 5.626, de 26 de setembro de 2005. Regulamenta a Lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais -LIBRAS, e o art. 18 da Lei n° 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial: República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2005. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm> Acesso em: 10 fev. de 2023.
[5]Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. 2010. Censo Demográfico Brasileiro do IBGE, Brasília. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/#. Acesso em: 10 set. 2023.
[6]Brasil. 1991. Lei 8213 de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial: República Federativa do Brasil, Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 22 fev. 2023.
[7]Schneider, P. V. 2020. O labor da pessoa com deficiência: Intersecções entre a lei de cotas e o preconizado pelo trabalho decente frente a Agenda 2030. PUC Campinas, Campinas, SP, Brasil.
[8]Gil, A. 1991. Como elaborar projetos de pesquisa, 3ed. Atlas, São Paulo, SP, Brasil.
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[10]Kymlicka, W. 2001. Politics in the vernacular: nationalism, multiculturalism, and citizenship. Oxford University Press, Oxford, UK New York.
[11]Organização das Nações Unidas [ONU]. 1948. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris: ONU. Disponível em: <https://www.ohchr.org/en/human-rights/universal-declaration/translations/portuguese?LangID=por>. Acesso em: 5 jun. 2023.
[12]Schein, E. 2009. Cultura Organizacional e Liderança. Atlas, São Paulo, SP, Brasil.
[13]Instituto Ethos. 2017. Indicadores Ethos – Guia para inclusão de Pessoas com Deficiência.
[14]Governo do Brasil. Relação Anual de Informações Sociais. RAIS 2024 (Parcial). Ministério do Trabalho e Emprego. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/assuntos/estatisticas-trabalho/rais/rais-2024/rais-2024-parcial/sumario-executivo_rais-2024-parcial.pdf. Acesso em: 19 abr. 2025.
[15]Escorel, S. Equidade em saúde. In: PEREIRA, I.B.; LIMA, J.C.F. Dicionário da educação profissional em saúde. 2ed. Escola Politécnica em Saúde Joaquim Venâncio, 2 Rio de Janeiro, RJ, 2008. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/equsau.html. Acesso em: 19 abrl. 2025.
[16]Bahia, M. S. 2006. Responsabilidade social e diversidade nas organizações: contratando pessoas com deficiência. Qualitymark, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.: Qualitymark, 2006
[17]Great place to work [GPTW]. 2023. Relatório Tendências de Gestão de pessoas 2023. Disponível em: https://gptw.com.br/conteudo/downloads/relatorio-tendencias-gestao-2023/. Acesso em: 10 set. 2023.
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Como citar
Miranda, P.L.; Cunha, C.L. A inclusão dos surdos no trabalho: um desafio bilíngue e bicultural. Revista E&S. 2025; 6: e2024037
Sobre os autores
Paolla Lima Miranda – Analista de Diversidade e Sustentabilidade. Especialista em Gestão de Pessoas e cursando MBA em ESG e Negócios Sustentáveis pela USP/Esalq. Avenida Pádua Dias, 11, Agronomia, 13418-900, Piracicaba, São Paulo, BrasilCristiana Lara Cunha – Doutora em Administração. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. Universidade de São Paulo. Avenida Professor Luciano Gualberto, 908, Sala H145, Butantã, 05508-010, São Paulo, São Paulo, Brasil