Escolha do periódico, escrita e submissão: o périplo da publicação científica
20 de setembro de 2024
6 min de leitura
Mapear as publicações da área de pesquisa é essencial para selecionar a revista certa e fugir das armadilhas
“Quando se trata da escrita acadêmica, é como na análise de Freud sobre sexo: ‘Todo mundo faz, mas ninguém fala sobre isso’”. A frase é da autora do livro “Writing Your Journal Article in Twelve Weeks: A Guide to Academic Publishing Success”, Wendy Belcher. Para ela, o tabu em torno do tema acaba tornando a escrita, que deveria ser algo natural, uma atividade disfuncional.
Em seu livro, Belcher, que é professora de literatura africana na Universidade de Princeton (EUA), destaca dois passos como os mais importantes para quem deseja ver um estudo publicado: fazer uma revisão minuciosa do material que já estiver rascunhado (o projeto) e selecionar o periódico para publicação – planejando a revisão de acordo com o veículo escolhido.
A professora adverte, porém, que essa seleção deve ser precedida de uma minuciosa análise dos periódicos existentes na área, para identificar o que melhor se encaixa no tema da pesquisa que se pretende publicar. A pena da escolha errada é a recusa do artigo, motivo mais do que justo para que essa etapa figure logo no início do processo.
Segundo a professora, uma das principais razões pelas quais um artigo é rejeitado é não estar em conformidade com as normas da publicação a que foi submetido. Por isso, uma vez escolhido o periódico, é indispensável estudá-lo para entender quais são os parâmetros exigidos para publicação. Tudo isso ajuda a nortear a revisão do trabalho e a ajustar sua escrita e formatação como artigo, além de identificar e evitar os chamados títulos predatórios (fraudulentos) – leia mais sobre esse assunto abaixo.
Início da jornada
Belcher detalha no livro os passos necessários para percorrer todas as etapas desse processo. Segundo ela, o ideal é submeter o trabalho em um periódico que tenha sistema de revisão por pares, cujas obras sejam publicadas por uma editora acadêmica (universitária ou comercial) e que conte com autores considerados especialistas em suas áreas. Os artigos devem citar suas fontes e detalhar a metodologia utilizada, para que outros pesquisadores possam replicar ou verificar os trabalhos.
Analisar o corpo e o conselho editorial do periódico, além de suas bases indexadoras, pode dar ao pesquisador uma visão ainda mais ampla sobre o tipo de artigo que ele deverá escrever. Ademais, um conselho editorial formado por especialistas pode acrescentar credibilidade e peso à publicação.
Seguindo os passos de Belcher, o próximo é a preparação do texto. Existem vários tipos de artigo dentro das categorias “publicações primárias” (derivadas dos resultados originais da pesquisa) e “publicações secundárias” (aquelas que discorrem sobre outros trabalhos), com estilos e estruturas diferentes – que também podem variar de acordo com os parâmetros da revista à qual o artigo será submetido para avaliação. O texto deve ser um relato sucinto da pesquisa do autor.
Artigo pronto, hora de submeter. Cada periódico tem um sistema de submissão próprio, basta seguir as instruções do que foi escolhido. O artigo deve ser enviado junto com a documentação exigida pela revista, conforme suas diretrizes.
Processo de publicação
Inicialmente, o texto e a documentação serão analisados pelo editor, para verificar se o material atende ao escopo da revista. Se o artigo for recusado nessa fase, é o fim do processo. Se for aceito, é encaminhado para a revisão por pares, em que especialistas na área da pesquisa avaliam a qualidade, relevância e originalidade do artigo.
Nessa etapa o artigo também pode ser rejeitado e devolvido ao autor. Se for aprovado, na maioria das vezes, volta ao autor para ajustes, que podem ser de “maior” ou “menor” complexidade. No primeiro caso, significa que o avaliador pediu grandes mudanças estruturais no texto e será necessário um pouco mais de esforço para reescrever algumas partes. Ajustes menores geralmente dizem respeito a normas, ortografia ou solução de pequenas dúvidas.
Depois que o autor faz os ajustes necessários, o editor decide se o artigo está pronto para publicação e, em caso positivo, ele é formatado, diagramado, submetido a uma leitura final pelo autor e, finalmente, publicado. O fluxo desse processo pode durar de seis meses a um ano, embora existam periódicos que ultrapassam esse tempo.
Revistas predatórias
Diferentemente do processo descrito acima, as revistas predatórias são conhecidas por prometerem agilidade no processo de revisão e altas taxas de aceitação. A proliferação desses periódicos tem se tornado um desafio crescente no mundo acadêmico. Essas publicações colocam em risco a integridade da pesquisa científica e a reputação dos pesquisadores que buscam publicar seus trabalhos.
O Ibict (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), lançou um formulário para levantar informações sobre revistas com indícios de práticas predatórias no país. O objetivo é mapear esses periódicos a partir das experiências e perspectivas dos pesquisadores.
Os resultados preliminares, apresentados no ABEC Meeting 2023, apontaram cerca de 5.338 denúncias, com a identificação de 478 revistas que exerciam práticas predatórias no mundo todo (Andrade et al., 2023).
O primeiro passo para evitar as armadilhas das revistas predatórias é entender como identificá-las. Ao contrário das publicações legítimas, as revistas predatórias frequentemente carecem de um processo editorial adequado. Elas podem publicar praticamente qualquer artigo mediante o pagamento de uma taxa, sem uma revisão por pares de qualidade.
Para Campos e Maricato (2024), essas revistas possuem características similares às tradicionais, o que atrai os pesquisadores. Elas facilitam o processo editorial, tornando rápida a publicação de um artigo, e cobram taxas altas pelo serviço. Apresentam ampla cobertura temática, disparam convites recorrentes captando autores, e seus sistemas operacional e de gestão aparentam não ter falhas. Esses periódicos também apresentam métricas de rankings falsos e imaginários.
Uma organização formada por pesquisadores voluntários lançou um site chamado “Predatory Journals”, cuja missão é expor e ajudar os pesquisadores a identificar periódicos predatórios e compartilhar suas experiências negativas com essas publicações. Para acessar o site, clique aqui.
Em 2020, o pesquisador norte-americano Matan Shelomi protagonizou um caso curioso para expor esse problema. Ele submeteu um artigo fictício, repleto de nomes e referências ao desenho animado japonês Pokémon, a uma publicação de reputação duvidosa. O tema era como o consumo de Zubat (uma das criaturas fictícias da animação) teria sido responsável pelo surto de Covid-19 em uma cidade que só existe no imaginário dos fãs de Pokémon. O fato ganhou notoriedade ao ser detalhado em um texto escrito por ele e publicado pelo site The Scientist.
O artigo citava outras figuras do mundo da ficção, como Gregory House, famoso personagem da série “House” (2004-2012), além de personagens da saga Harry Potter. Todas essas menções foram utilizas como se fossem relatos verídicos para os acontecimentos do estudo. A dupla de vilões do próprio Pokémon, Jesse e James, foram apresentados nas referências como “base teórica” para o estudo.
Jesse J James J (2020) Prepare for trouble: Coronavirus outbreak reaches North America. Rocket Science Monthly 21(2): 45–47 |
De acordo com o artigo, Bob Esponja também tinha publicações, juntamente com seus amigos Patrick e Sandy, que foram utilizadas para “fundamentar” o trabalho.
Squarepants, S Star P, Cheeks S (2014) Treatment of Karenovirus infection with processed food. Bikini Bottom Journal of Morbidity and Mortality 32: 2–50. |
O periódico aceitou o trabalho após quatro dias do seu recebimento, mediante pagamento de uma taxa no valor de US$ 1.179,00. Apesar das brincadeiras, esse experimento lançou luz sobre a falta de critério desse tipo de publicação.
Métricas de impacto
A crescente preocupação com essas práticas enganosas tem levado a comunidade científica a ser mais cautelosa. Conforme alertado pelo Jornal da USP, o “golpe científico” das revistas predatórias não só compromete a credibilidade da pesquisa publicada, mas também pode manipular as métricas de impacto, iludindo aqueles que buscam informações confiáveis. Isso ocorre, em muitas das vezes, quando pesquisadores, pressionados pela necessidade de publicação para a progressão de carreira e visibilidade, caem na armadilha de revistas que prometem publicação rápida, o que pode vir a comprometer sua reputação no meio acadêmico, como discutido pelo pesquisador Ernesto Spinak (2021). O quadro abaixo apresenta algumas considerações para se levar em conta antes de submeter um artigo.
A conscientização sobre os perigos das revistas predatórias é um passo vital para proteger a integridade da ciência e garantir que a pesquisa publicada contribua de maneira significativa para o avanço do conhecimento. Assim como salientam os pesquisadores da USP Hoch e Mench (2024), o esforço coletivo em educar a comunidade científica sobre práticas responsáveis de publicação pode ajudar a “cortar o mal pela raiz”, promovendo uma cultura de pesquisa ética e de qualidade. A ciência deve ser tratada com seriedade, para que personagens como Pokémon, Bob Esponja e Harry Potter permaneçam apenas na seara do entretenimento e dos momentos de descontração na TV e no videogame.
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