A extinção da criatividade
29 de julho de 2024
6 min de leitura
Inteligência artificial generativa pode ser aliada das boas ideias, se for usada com bom senso
Em junho de 2024, a estreia do filme “The Last Screenwriter” (O Último Roteirista, em tradução livre) foi cancelada em um cinema de Londres, na Inglaterra. O motivo foi a reação pública ao fato de que o roteiro do longa havia sido criado por uma inteligência artificial (IA): o ChatGPT.
O chatbot da Open AI vem dividindo opiniões desde que surgiu. Lançado em novembro de 2022, em dois meses já havia atingido a marca de 100 milhões de usuários, o que na época foi considerado um recorde histórico. Na esteira do ChatGPT nasceram vários outros modelos de inteligência artificial generativa, com os quais tornou-se possível criar textos e imagens apenas com um comando, sem esforço criativo.
O resultado foi o surgimento de uma avalanche de conteúdos concebidos por “mentes” digitais em todos os tipos de cenário, inclusive o científico. Em 2023, segundo uma reportagem publicada no jornal inglês The Guardian, mais de 10.000 artigos precisaram ser retratados em vários periódicos científicos pelo mundo em função do uso indevido ou inadequado de IA em algum momento da elaboração dos manuscritos, fato divulgado na coluna IA na escrita científica: avanços e implicações éticas, publicada pela Revista Estratégias e Soluções (E&S), da Editora Pecege.
Esse ambiente estimulou a Turnitin, criadora de uma ferramenta de detecção de similaridade (plágio), a lançar recentemente um produto para reconhecer textos escritos por inteligência artificial. Atualmente em fase de aperfeiçoamento, a solução ainda não está disponível no Brasil.
A preocupação tomou conta de vários setores, especialmente na área da educação. Temores envolvendo ética, dependência e até prejuízos à criatividade foram externados em todos os cantos.
A era da extinção da criatividade estaria chegando? O gramático e professor de português Pasquale Cipro Neto não acredita nessa possibilidade. “Não digo que isso é impossível, porque, a esta altura da vida e de tudo de vergonhoso que acontece no planeta, tudo é possível (‘Tudo é possível, só eu impossível’, diz Drummond em ‘Segredo’). Mas me parece inviável que uma máquina sinta o que sente uma pessoa, que traduza sentimentos, reações, fatos como o faz uma pessoa. Não imagino uma máquina escrevendo algo como ‘Tecendo a Manhã’ (de João Cabral de Melo Neto), por exemplo. No fundo, no fundo, a minha vontade é mandar a burrice, digo, a ‘inteligência’ artificial lamber sabão (não é bem isso o que eu gostaria de dizer, mas há crianças na sala)”, afirmou Pasquale, bem-humorado, à Revista E&S.
Um estudo a esse respeito, publicado em julho de 2024 na revista Science Advances, concluiu que as ferramentas de IA favorecem a criatividade individual do autor, mas, como efeito colateral, produzem uma espécie de nivelamento coletivo.
“Descobrimos que o acesso a ideias de IA generativa faz com que as histórias sejam avaliadas como mais criativas, mais bem escritas e mais agradáveis, especialmente entre escritores menos criativos. No entanto, as histórias produzidas com a ajuda da IA são mais semelhantes entre si do que as escritas apenas por humanos”, diz o resumo do trabalho.
O Instituto Pecege promoveu recentemente o “Treinamento de Inteligência Artificial: Engenharia de Prompt”, ministrado pela Alura, para atualizar o quadro de funcionários sobre as inovações tecnológicas. O instrutor do curso, Alexandre Aquiles, destacou que as IAs generativas são “excelentes para tarefas de refinamento de texto”.
Segundo ele, atividades como corrigir ortografia, adequar gramática e sintaxe, ajustar o “tom de voz” para públicos-alvo e canais específicos (blogs, redes sociais, livros), procurar sinônimos, traduzir ou estruturar o texto em seções podem ganhar mais agilidade com essas ferramentas.
“As IAs generativas ajudam também a gerar ilustrações e transcrever áudio em texto com muita eficiência”, destacou Aquiles, ao mesmo tempo em que ponderou sobre a importância de usá-las apenas como auxiliares, condição na qual têm potencial de amplificar a capacidade criativa. “Usadas na geração de ideias e busca de novas perspectivas, as IAs são um estímulo à criatividade, fazendo com que a pessoa se concentre em aspectos mais amplos do texto e até supere um bloqueio criativo”, sugere.
“É importante ressaltar que [usar a ferramenta dessa forma] funciona melhor para pessoas com mais experiência na criação de textos. Pessoas menos maduras podem ter o desenvolvimento de seu potencial criativo prejudicado”, disse. O quadro abaixo mostra algumas ferramentas que Aquiles recomenda para ajudar em atividades específicas.
No entanto, é essencial prestar atenção ao resultado gerado pelos modelos, porque as ferramentas de IA generativa para texto, conhecidas como LLMs (Large Language Models), não verificam se o conteúdo produzido é factualmente correto. “Isso pode gerar ‘alucinações’, o termo técnico para texto que contém dados incorretos, mas que é correto em sua estrutura”, explica Aquiles.
De acordo com ele, boa parte das interfaces conversacionais, como ChatGPT e Google Gemini, contém uma camada de integração com ferramentas de busca como Bing e Google, que mostram a origem das informações, o que diminui a ocorrência das alucinações. “O Gemini tem atualmente um botão de checar resposta, que mostra as fontes para cada trecho de texto gerado.”
O design ops manager do Pecege, Lucas Tangi, um dos participantes do treinamento, considera a inteligência artificial como aliada da geração de ideias. “Vejo a IA como uma ferramenta que potencializa a criatividade.” Segundo ele, a acessibilidade das IAs generativas, principalmente por meio de prompt (frase de comando que inicia a “conversa” com o modelo), democratiza o uso da inteligência artificial, “beneficiando usuários com menos conhecimento técnico e, ao mesmo tempo, impulsionando aqueles que dominam a programação.”
Para Tangi, o avanço das IAs generativas e das novas tecnologias torna a criatividade uma habilidade ainda mais importante para os programadores, que precisarão ser cada vez mais criativos para solicitar, revisar e buscar soluções em conjunto com as ferramentas digitais.
Neurociência
Ainda é cedo para medir os resultados dessa movimentação toda, mas uma coisa é certa, pelo menos aos olhos da neurociência: a criatividade pode ser exercitada. Portanto, é permitido concluir que os efeitos da utilização da IA como auxiliar na produção de textos vai depender da maneira como as ferramentas serão utilizadas, como disse Aquiles.
Se forem tratadas, de fato, somente como auxiliares, podem funcionar como catalisadoras e potencializadoras de ideias. Para isso a recomendação é evitar os exageros. O neurologista brasileiro Miguel Nicolelis faz uma advertência no livro “O verdadeiro criador de tudo: como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos” (Ed. Planeta): “A convivência contínua com a tecnologia e os computadores pode afetar o funcionamento do cérebro humano. Esse cenário se manifestará quão mais rapidamente o nosso cérebro for ludibriado, convencendo-se de que recompensas maiores seriam auferidas se ele cessasse de expressar os atributos mais celebrados da condição humana”.
Para Nicolelis, que leciona e lidera estudos na Universidade Duke, nos Estados Unidos, o cérebro humano é capaz de “uma expressão quase ilimitada de criatividade, inteligência, intuição, discernimento e sabedoria que excedem, em muitas ordens de magnitude, a performance de qualquer computador”. Por isso, em outro trecho do livro, ele atribui ao órgão “uma posição única enquanto sistema computacional… Por definição, em contraste aos computadores digitais, nem a operação nem os produtos desse ‘computador orgânico’ podem ser simulados ou reproduzidos por um algoritmo digital”.
SUGESTÃO DE LEITURA |
1 – “ChatGPT para o dia a dia” (Bruna Escudelario – Casa do Código). Traz uma visão de como usar no dia a dia, desde resumos até escrita criativa. 2 – “Inteligência Artificial e ChatGPT” (Fabrício Carraro – Casa do Código). Traz uma visão mais ampla de IA Generativa; aprofunda no funcionamento das ferramentas e ensina como criar prompts de qualidade com técnica de Prompt Engineering. |
Para ter acesso às referências desse texto clique aqui |
Este conteúdo foi produzido por:
Renata de Gáspari Valdejão Almeida
Editora assistente da Revista Estratégias e Soluções (E&S), da Editora Pecege. É jornalista, roteirista e pesquisadora. Trabalhou 16 anos na Folha de S.Paulo, como redatora e repórter, e colaborou com várias revistas de circulação nacional, como Época Negócios, Revista Pais & Filhos e Superinteressante. Atuou na área de comunicação da Faculdade de Medicina da USP e foi coordenadora de Audiovisual da UNA-SUS/UFMA, no Maranhão.