Qualidade do mercado de trabalho: intermediário da relação entre diversificação produtiva e desigualdade de renda
29 de janeiro de 2024
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DOI: 10.22167/2675-6528-20230115
E&S 2024, 5: e20230115
Jaqueline Moraes; José Erasmo Silva
Estudos sobre a diversificação da estrutura produtiva têm como pioneiro o trabalho desenvolvido por Frenken et al.[1], que mensura o impacto das medidas de diversificação (relacionada e não relacionada), mais exploradas adiante, sobre aquelas métricas que são tradicionais no mercado de trabalho, como desemprego, produtividade e nível de emprego. Moraes[2] propõe uma abordagem da relação com a qualidade do mercado de trabalho brasileiro, mensurando como a diversificação relacionada (doravante RV, de “related variety”) e a não relacionada (doravante UV, de “unrelated variety”) afetam os diferentes quantis da distribuição da qualidade nos estados. Foi possível concluir que a UV tem mais influência na equalização dos mercados de trabalho, o que, de certa forma, corrobora o resultado encontrado em Hartmann et al.[3], que aponta um aumento do prêmio de habilidade entre os trabalhadores em regiões que se diversificam para atividades não relacionadas, influenciando a distribuição de renda da área.
Partindo desses resultados, foi proposta outra abordagem, complementar e intermediária, feita para testar a relação entre a qualidade do mercado de trabalho e a desigualdade de renda dos estados brasileiros. Moraes[4] argumenta que o impacto do aumento da qualidade é negativo para estados que são mais desiguais e que, ao se considerar os índices de Gini, Mehran e Piesch como indicadores de desigualdade, os efeitos são ainda maiores. No entanto, essas foram análises separadas. O objetivo deste trabalho é unir as duas pontas — diversificação da estrutura produtiva e desigualdade de renda — através da qualidade do mercado de trabalho, oferecendo um componente a mais, estrutural, para explicar os efeitos e impactos. Para tanto, este trabalho utilizará de modelo de equações estruturais, analisando os efeitos direto e indireto da UV, em específico, sobre a desigualdade da renda. O efeito indireto é o impacto da UV no Índice de Qualidade do Mercado de Trabalho (IQMT), e o efeito direto diz respeito à ação da UV sobre os índices de desigualdade.
Para atingir os objetivos deste estudo, foram utilizados os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), realizada pelo Instituto de Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com dados trimestrais da primeira entrevista, no período de 2012 a 2020. Partindo desses dados, foram criados os indicadores de UV e de desigualdade de renda (Gini, Mehran e Piesch), além do IQMT. O indicador de UV foi calculado utilizando os dados da Classificação Nacional de Atividades Econômicas Domiciliar 2.0 (CNAE Domiciliar 2.0), apresentada na PNAD Contínua a nível estadual. O cálculo é tal como pode ser visto na Equação (1):
onde: é a participação dos setores econômicos, que é a soma das participações das atividades econômicas dos setores em termos de participação no emprego.
Os indicadores de desigualdade seguem a medição tradicional proposta por Hoffmann[5] e foram calculados para os estados. São indicadores associados à curva de Lorenz e à linha de igualdade perfeita, como o índice de Gini (G), o índice de Mehran (M) e o índice de Piesch (P). O IQMT é um índice latente criado a partir de variáveis selecionadas, utilizando a análise de componentes principais (ACP). As variáveis utilizadas para compor o IQMT estão presentes na Tabela 1. Assume-se que o componente principal é o fator latente que mede a qualidade do mercado de trabalho e será usado como o IQMT.
Tabela 1. Variáveis utilizadas para cálculo do índice de qualidade do emprego, divididas por dimensões
Fonte: Dados originais da pesquisa com informações da PNAD Contínua.
Nota: *Esta variável traz a comparação de duas variáveis: salário-hora das horas realmente trabalhadas × 4,3 (salário semanal) e o salário-mínimo do ano de referência/172 (salário-mínimo semanal).
Para estudar a relação proposta, foi utilizado o modelo de equações estruturais (MEE), seguindo a lógica apresentada na Figura 1. Em adição às variáveis principais (UV, IQMT e desigualdade de renda), foram incluídas medidas de controle: proporção de pessoas com ensino superior, proporção de mulheres em cargos de liderança (“proxy” do fenômeno do teto de vidro) e proporção de ocupados na indústria, no setor público e nos serviços financeiros.
Figura 1. Modelo de equações estruturais proposto para o artigo
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Para este estudo, assumiu-se a hipótese de que a UV afeta positivamente o IQMT — efeito indireto —, e este afeta negativamente a desigualdade. Além disso, a UV afeta negativamente a desigualdade — efeito direto. Assim, o efeito que a UV tem sobre a desigualdade é intermediado pelo IQMT. Espera-se também que as variáveis de controle possuam sinais negativos na sua relação com a desigualdade de renda. O IQMT criado tem estatística de teste de esfericidade de Barlett de 233,258, com 28 graus de liberdade e p-valor de 0,000. Isso indica que o conjunto de variáveis é adequado para a análise fatorial. A medida Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) para o IQMT calculado foi de 0,8178, sendo classificada como muito boa a adequação global da análise fatorial[6]. Na Figura 2 é possível ver a evolução do IQMT para os estados brasileiros no período que vai do primeiro trimestre de 2012 ao quarto trimestre de 2020.
Os resultados acoplam alguns fenômenos importantes. Primeiro que a economia brasileira de 2012 a 2020 passou por enormes saltos. Mas, em termos de mercado de trabalho, entre 2016 e 2017 houve a Reforma Trabalhista, que regulamentou as novas formas de emprego, flexibilizou os mecanismos de remuneração e mudou o funcionamento da Justiça do Trabalho. Em 2019 houve uma grande e importante expansão no número de empregos informais e de contratos formais atípicos, parciais e intermitentes, que são regulamentados juntamente com os empregos de “home office”, partindo da Reforma. Esses contratos ficaram mais evidentes em 2020, com a pandemia de covid-19. Por ser calculado até o quarto trimestre de 2020, esse índice ainda não consegue captar com precisão os efeitos do primeiro ano da pandemia.
Figura 2. Evolução do IQMT para os estados brasileiros do primeiro trimestre de 2012 ao quarto trimestre de 2020
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Estimou-se o MEE proposto na Figura 1 por dois métodos, a saber: “maximum likelihood (ML)” e “weighted least square mean and variance adjusted (WLSMV)”. Os critérios de decisão utilizados para a comparação na escolha do melhor modelo foram o “confirmatory factor index (CFI)”, “Tucker-Lewis index (TLI)”, “root mean square error of approximation (RMSEA)” e “standardized root mean square residual (SRMR)”, além da estatística de teste qui-quadrado do modelo[7],[8]. Os valores podem ser observados na Tabela 2.
Tabela 2. Medidas de ajuste dos modelos estimados
Modelo | Medida | Estimador | CFI | TLI | RMSEA | SRMR | p-valor | |
1 | Gini | WLSMV | 0,990 | 0,971 | 0,070 | 0,032 | 99,609 | 0,000 |
2 | Piesch | WLSMV | 0,990 | 0,971 | 0,070 | 0,032 | 99,609 | 0,000 |
3 | Mehran | WLSMV | 0,990 | 0,971 | 0,070 | 0,032 | 99,609 | 0,000 |
1 | Gini | ML | 0,821 | 0,462 | 0,287 | 0,087 | 243,317 | 0,000 |
2 | Piesch | ML | 0,813 | 0,438 | 0,287 | 0,082 | 243,317 | 0,000 |
3 | Mehran | ML | 0,838 | 0,515 | 0,287 | 0,092 | 243,317 | 0,000 |
Para qualquer uma das medidas de desigualdade utilizadas como variáveis, o estimador WLSMV é preferível em relação ao ML. A seguir são explorados os resultados obtidos nos três modelos estimados, que buscam explicar o índice de Gini, índice de Piesch e índice de Mehran.
A diversificação não relacionada, ao menos diretamente, impacta positivamente a desigualdade de renda. No entanto, seu efeito muito mais positivo sobre a qualidade do mercado de trabalho consegue indiretamente, através deste, impactar negativamente o índice de Gini, como pode ser visto na Figura 3. Assim, a UV afeta positivamente o IQMT (como já encontrado antes[2]) — efeito indireto —, e este afeta negativamente a desigualdade. No entanto, esperava-se que a UV afetasse negativamente a desigualdade — efeito direto —, e isso não aconteceu. Porém, pode-se entender que, sendo esse efeito permeado entre trabalhadores, ele acontece dentro do mercado de trabalho e não dentro da estrutura produtiva da região. Ou seja, quando os autores[10] expõem que em economias mais diversificadas os indivíduos têm mais oportunidades de aprender e de escolher suas ocupações — contribuindo não só para o portfólio, mas também para tornar a economia menos desigual —, isso está relacionado ao aumento da qualidade do mercado de trabalho da região.
Figura 3. Modelo de equações estruturais para o índice de Gini
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Além disso, tal resultado consegue unir os pontos do que foi estudado anteriormente[2], demonstrando que a UV afeta mais positivamente mercados de trabalho de menor qualidade associada e que o aumento da qualidade dos postos de trabalho gerados em um estado parece ser capaz de diminuir sua desigualdade de renda[3]. Isso tudo através do impacto indireto da diversificação da estrutura produtiva no mercado de trabalho, agindo na desigualdade de renda.
Em relação às variáveis de controle, todas apontaram efeitos contrários aos esperados. Para este modelo, a proporção de ocupados na indústria não foi significativa. A interpretação dos coeficientes é tal que o aumento de uma unidade na medida de UV leva a um aumento de 0,09 unidades no Gini, e de 0,59 no IQMT, que por sua vez diminui o índice de Gini em 0,20 unidades, na média, ceteris paribus. O aumento de um ponto percentual na proporção de pessoas com ensino superior causa um aumento no Gini de 0,25 unidades, e o aumento de um ponto percentual na proporção de mulheres em cargos de liderança causa crescimento no Gini em 0,23.
Para o índice de Piesch, boa parte das conclusões se mantêm, inclusive a não significância da proporção de ocupados na indústria, como pode ser visto na Figura 4. O que muda são as magnitudes dos coeficientes estimados. Sendo assim, o aumento de uma unidade na medida UV leva a um aumento de 0,07 unidades no índice de Piesch, e de 0,59 no IQMT, que, por sua vez, diminui o índice de Piesch em 0,17 unidades, na média, ceteris paribus. O aumento de um ponto percentual na proporção de pessoas com ensino superior aumenta o índice de Piesch em 0,25 unidades, e o aumento de um ponto percentual na proporção de mulheres em cargos de liderança aumenta o índice de Piesch em 0,31.
Figura 4. Modelo de equações estruturais para o índice de Piesch
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
No modelo da Figura 5, nem a variável de proporção de ocupados na indústria nem a de proporção de mulheres em cargos de liderança se mostraram significativas. Seguindo a mesma lógica explorada acima, o aumento de uma unidade na medida UV leva a um aumento de 0,12 unidades no índice de Mehran, e de 0,59 no IQMT, que, por sua vez, diminui o índice de Mehran em 0,27 unidades, na média, ceteris paribus. O aumento de um ponto percentual na proporção de pessoas com ensino superior aumenta o índice de Mehran em 0,25 unidades.
Figura 5. Modelo de equações estruturais para o índice de Mehran
Fonte: Resultados originais da pesquisa.
Sobre o ajuste desses modelos, pode-se dizer que apresentaram boas medidas de qualidade. O CFI e o TLI acima de 0,9 indicam que o modelo consegue melhorar em mais de 90% a capacidade explicativa da variabilidade da desigualdade de renda. Nos modelos estimados, o CFI foi 0,991, e o TLI 0,973. O RMSEA e o SRMR menores que 0,08 indicam que o modelo está bem ajustado, no sentido de que os resíduos por ele deixados são baixos, legando-lhes boa capacidade preditiva. Nos modelos estimados, o RMSEA foi de 0,070, e o SRMR de 0,032. Além disso, o p-valor dos modelos lhes conferem significância global.
A não significância da variável de ocupação na indústria, nos serviços públicos e nos serviços financeiros pode ser explicada pela queda na participação desses setores na geração de empregos no Brasil. Apesar de o grande “driver” gerador de postos de trabalho no país ser o setor terciário, essas vagas não se concentram majoritariamente nas ocupações dessa área, e sim em vagas dos setores de alojamento, alimentação e serviços domésticos. Os principais resultados desse estudo conseguem juntar as pontas do que já havia sido estudado, através da análise do impacto indireto da diversificação da estrutura produtiva no mercado de trabalho agindo na desigualdade de renda.
É importante salientar que este trabalho enfrentou algumas limitações, natural a estudos desta natureza. Primeiramente, é possível repensar as variáveis consideradas na criação do IQMT, bem como propor melhores formas de classificação na composição das binárias. Em segundo lugar, é importante repensar a desigualdade em um formato multidimensional — como já acontece com as medidas de pobreza —, que leve em conta não somente métricas de renda. Em terceiro lugar, possivelmente esses resultados seriam diferentes se isolados para grandes grupos de classificação de ocupação, o que seria altamente relevante, considerando que as participações no emprego total são diferentes entre os grupos, como foi possível perceber nos resultados do trabalho. Em quarto lugar, e isso se vincula a qualquer trabalho econométrico, pode-se repensar a metodologia aplicada.
Referências
[1] Frenken K.; Oort F.V.; Verburg,T. Related variety, unrelated variety and regional economic growth. Regional Studies, Taylor & Francis. 2007; 41(5): 685–697. DOI: https://doi.org/10.1080/00343400601120296.
[2] Moraes J. Diversificação econômica e qualidade do mercado de trabalho no Brasil: uma abordagem de regressão quantílica para dados em painel (2012–2019) [Tese de Doutorado], Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2020. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/1128687. Acesso em: 31 out. 2023.
[3] Hartmann D; Guevara M.R.; Jara-Figueroa C.; Aristarán M.; Hidalgo C.A. Linking Economic Complexity, Institutions, and Income Inequality. World development. 2017; 93: 75–93. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.worlddev.2016.12.020.
[4] Moraes J. Labor Market Quality and Income Inequality: An Approach of Quantile Regression for Panel Data for Brazil (2012–2018). In: Anais do IX Congreso de la Asociación Latinoamericana de Poblacion (ALAP); 2020. Disponível em: https://congresosalap.com/alap2020/resumos/0001/PPT-eposter-trab-aceito-0078-1.PDF. Acesso em: 31 out. 2023.
[5] Hoffmann R. Decomposition of Mehran and Piesch inequality measures by factor components and their application to the distribution of per capita household income in Brazil. Brazilian Review of Econometrics. 2004; 24(1): 149–171. DOI: https://doi.org/10.12660/bre.v24n12004.2706.
[6] Fávero L.P.; Belfiore P. Manual de análise de dados: estatística e modelagem multivariada com Excel, SPSS e Stata. Rio de Janeiro (RJ): Elsevier Brasil, 2017. 1187 p.
[7] Brown T.A. Confirmatory factor analysis for applied research. 2ed. Nova York (NY): Guilford Publications. 2015. 462 p.
[8] Kline R.B. Principles and practice of structural equation modeling. 4ed. Nova York (NY): Guilford Publications. 2015. 532 p.
Como citar
Moraes, J.; Silva, J. E. Qualidade do mercado de trabalho: intermediário da relação entre diversificação produtiva e desigualdade de renda. Revista E&S. 2024; 5: e20230115.
Sobre os autores
Jaqueline Moraes , Sebrae Nacional – Unidade de Gestão Estratégica – Avenida Imperatriz Leopoldina, 550 – Vila Nova; CEP 13073-035 – Campinas/SP, Brasil.
José Erasmo Silva , Professor Orientador MBA Data Science e Analytics – Rua Maria Társia, 51 – Jardim Elite; CEP 13417-440 – Piracicaba/SP, Brasil.
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