Processo de implantação da telemedicina em um hospital da rede privada em tempos de covid-19
25 de janeiro de 2024
9 min de leitura
DOI: 10.22167/2675-6528-20230059
E&S 2024, 5: e20230059
Átilla Arruda Pereira; Bethania Fernandes da Fonseca Zago
Durante a pandemia de covid-19, causada pelo coronavírus (SARS-Cov-2), o mundo viveu tempos de insegurança e medo. O ponto inicial foi a cidade de Wuhan, na China, onde, em dezembro de 2019, profissionais da saúde identificaram pacientes com quadro similar à pneumonia. A covid-19 é uma doença viral que apresenta sintomas como febre, tosse e dificuldade para respirar. A transmissão ocorre de várias formas: espirro, tosse, catarro, saliva, contato físico e contato com superfícies. Algumas pessoas se contaminam e não apresentam sintomas, fazendo a multiplicação viral sem perceber. Outras apresentam quadros leves a graves que, se não tratados a tempo, podem ser letais[1].
Sabe-se que o coronavírus provoca muitas complicações em pessoas com comorbidades, e a orientação da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG)[2] foi de que pessoas com mais de 60 anos, sobretudo se tivessem diabetes, hipertensão, problemas respiratórios, cardiológicos, renais, neurológicos, além de indivíduos em tratamento de câncer ou que estivessem com a imunidade comprometida, bem como todos aqueles com mais de 80 anos ou que tinham sinais de fragilidade, tivessem o contato social restringido, uma vez que os idosos e as pessoas com comorbidades tinham mais chance de desenvolver quadros graves[3].
No Brasil o vírus fez muitas vítimas fatais no período de auge da disseminação da doença, e isso estimulou o isolamento social, com o confinamento das pessoas aos lares. Para combater a pandemia, a área de saúde teve que se reinventar. Adotaram-se diretrizes de prevenção orientadas pela Organização Mundial da Saúde e pelo Ministério da Saúde, com medidas rigorosas que foram do isolamento social ao uso de máscaras e de álcool em gel 70% nas mãos, entre outras. Porém, o acolhimento nas unidades de saúde públicas e privadas era deficiente em termos de equipamentos, tecnologias e recursos humanos, mostrando a necessidade de adaptação urgente para dar continuidade aos cuidados em saúde e ao enfrentamento da covid-19.
Os serviços de saúde pública e suplementar se moldaram a essa nova realidade utilizando estratégias e ferramentas que possibilitassem o atendimento de forma segura e remota. A telemedicina foi a estratégia que mais se encaixou nessa necessidade. A modalidade possibilita que diferentes profissionais de saúde realizem atendimentos com visão holística de atenção, enquanto os pacientes não precisam sair de casa. Esse formato de atenção também se deu nas unidades hospitalares privados e de convênios associados.
Essa experiência mostrou que a consulta virtual durante a pandemia de covid-19 pode ser efetiva. No Brasil, ela foi orientada pelo Conselho Federal de Medicina, sob a Portaria nº 467/2020, do Ministério da Saúde, que dispõe sobre a telemedicina em caráter excepcional e temporário, com o objetivo de regulamentar e operacionalizar as medidas de enfrentamento de emergências de saúde pública de importância internacional[4].
Para a melhor compreensão da telemedicina, é importante dizer que se trata de um conjunto de tecnologias da informação que aplica ações médicas à distância, levando informação e atenção a pacientes e outros profissionais que estão em diferentes locais em tempo real. Este processo pode acontecer por dispositivos fixos (computador) ou móveis (celulares ou tablets) conectados à internet, e é dividido em sete subáreas: telediagnóstico, telecirurgia, teleconsulta, teleinformação, telereabilitação, teleassistência e, por fim, telemonitoramento[5],[6].
O objetivo deste estudo foi descrever quais foram os impactos da implantação da telemedicina como ferramenta de cuidado continuado em uma empresa e seus clientes, considerando dados obtidos em um hospital de grande porte de uma rede privada do município de São Paulo que presta atendimento em nível terciário de saúde.
O hospital cenário deste estudo é ligado a uma operadora de saúde especializada em pessoas idosas. Este estudo tem caráter exploratório-descritivo documental, com abordagem qualitativa, escolhido por trabalhar com temas pouco explorados[7]. Essa abordagem se caracteriza por observar, classificar e descrever um problema ou os processos de produção pouco pesquisados de um fenômeno[8]. Optou-se por analisar os relatórios e boletins diários de atendimento durante os meses de julho e agosto de 2020, fazendo um comparativo com estudos de outros autores, que analisaram a telemedicina com informações obtidas em diferentes bases de dados.
O hospital analisado faz parte de uma operadora de saúde que está há 22 anos no mercado e contempla hospitais e pronto-atendimentos próprios e conveniados, núcleos de medicina avançada e diagnóstica, núcleos especializados em geriatria, cardiologia, dermatologia, oncologia, oftalmologia e ortopedia/traumatologia, além de outras especialidades. Em abril de 2020, prestava serviços para 470 mil pacientes, que pertenciam às classes econômicas D, C e B.
A análise se deu a partir dos relatórios e boletins diários dos atendimentos. Foi possível perceber que tal modalidade de atendimento influenciou positivamente as novas adesões ao plano de saúde associado a este hospital, corroborando a geração de demanda para um novo mercado consumidor e o aumento no faturamento recorrente da empresa.
As teleconsultas são realizadas no formato on-line por teleconferência, feita por um profissional de saúde de qualquer especialidade para consulta, tratamento, pedido de exames e prescrição digital. Na teleinterconsulta acontece a troca de informações e opiniões entre médicos ou outros profissionais da saúde, para auxílio terapêutico ou ao diagnóstico. Já o telemonitoramento é realizado sob orientação e supervisão médica para monitorar à distância parâmetros de saúde e/ou doença.
Como instrumento de coleta de dados, utilizou-se um formulário com questões orientadoras para a análise das fichas dos atendimentos. A partir delas, consideraram-se as características sociodemográficas da população e da empresa estudada, conforme mostram os resultados apresentados a seguir. A aplicação da análise de conteúdo neste estudo desdobra-se nas etapas de pré-análise, exploração do material ou codificação e tratamento dos resultados obtidos/interpretação[9]. Foram analisados 2.300 teleatendimentos entre os meses de julho e agosto de 2020 e 13 relatórios do consolidado semanal, referente aos boletins de atendimento diário nas teleconsultas.
Tabela 1. Número de atendimentos segundo gênero e idade
Indicador | Sexo | Porcentagem | |
Média de idade | Masculino % | Feminino % | Total % |
40 a 49 | 4,0 | 9,2 | 13,2 |
50 a 59 | 6,1 | 13,3 | 19,4 |
60 mais | 34,5 | 32,9 | 67,4 |
Nº de atendimentos | 44,6 | 55,4 | 100 |
Entre os 2.300 pacientes atendidos, a maioria (67,4%) tinha mais de 60 anos, 62,4% eram do sexo feminino, e 44,6% do masculino. Quanto aos motivos da procura pela consulta, as intercorrências clínicas formaram a maioria (67,1%), entre as quais figuraram comorbidades relacionadas à hipertensão com oscilação de pressão arterial, diabetes descompensada, transtornos de ansiedade, dor lombar/articular e infecções do trato urinário. Em seguida ficaram as consultas de rotina e os retornos (19,4%), abrangendo renovação de receitas, exames e atestados. Em terceiro lugar ficaram as consultas a respeito de sintomas gripais e dos sintomas relacionados à covid-19 (13,5%).
Tabela 2. Principais motivos de consulta
Intercorrências clínicas (hipertensão com oscilação de PA, diabetes descompensadas, ansiedade, infecções do trato urinário, dor lombar e articular) | 67,1% |
Rotinas e retornos (receitas, exames e atestados) | 19,3% |
Sintomas gripais e sintomas de covid 19 | 13,6% |
Houve procura significativa em todas as especialidades ofertadas, porém as dez mais procuradas foram as consultas de geriatria (65), cardiologia (50), alergia e imunologia (50), gastroenterologia (40), oftalmologia (40), ortopedia/traumatologia (38), oncologia clínica (35), pneumologia (34), urologia (30), endocrinologia (29) e outras especialidades diversas com 179 consultas. Outro ponto a destacar foi o tempo de duração das consultas, em comparação às formas presencias, como mostra a Tabela 3, a seguir.
Tabela 3. Média de tempo e consulta por formato de atendimento e agenda
Tempo de espera pela consulta | Presencial | Virtual |
Consulta agendamento | Três a sete dias | Três dias |
Consulta do dia | 60 min. | 40 min. |
Média de tempo para cada consulta | 40 a 50 min. | 25 a 30 min. |
Sobre o tempo de espera pela consulta ou oferta de outro serviço, percebeu-se que não houve perdas. A consulta presencial demorava uma média de sete dias, enquanto a virtual levava três dias. Aguardar no mesmo dia pelo horário da consulta (encaixe) levava até uma hora na presencial, contra 40 minutos na virtual. No que diz respeito ao tempo de demora das consultas, as presenciais levavam até 50 minutos, e as teleconsultas até 30 minutos.
A pesquisa também revelou que o formato presencial precisa de mais profissionais para o atendimento. Já no formato virtual, cuja presença foi elaborada por escalas, houve mais satisfação com o profissional, adequação de horário e presteza no atendimento. A média de profissionais destacados para esse serviço foi de 50 enfermeiros e 25 médicos.
O hospital avalia os atendimentos presenciais por meio de um dispositivo com cores: verde é para o que contemplou as expectativas do paciente, amarelo se o atendimento foi razoável, e vermelho se o atendimento não correspondeu às expectativas, além de uma caixa de texto para possíveis sugestões. No formato da telemedicina, os resultados somaram 81% de cor verde, 16% de amarelo e apenas 3% de vermelho.
Tabela 4. Consolidados em categorias dos depoimentos dos idosos atendidos por telemedicina correlacionando presencial e virtual
Indicador | Presencial | Virtual |
Tempo de espera da consulta: Consideram o tempo de espera muito longo Consideram o tempo de espera essencial | 87% 13% | 23% 77% |
Tempo gasto durante a consulta: Considerou que o tempo é o suficiente para sua necessidade Considerou que deveria ser um pouco mais de tempo | 78% 22% | 98% 2% |
Em relação ao alcance das expectativas na procura e na oferta de consulta, exames, medicação, diagnóstico e outros necessidades: Consideram que atende suas expectativas Não consideram que atende suas expectativas | 97% 3% | 98% 2% |
A Tabela 4 mostra que há uma disparidade significativa de satisfação das pessoas idosas atendidas no hospital relacionada aos atendimentos presenciais e virtuais: 87% dos que foram atendidos de forma presencial consideraram o tempo de espera muito longo, contra 23% na modalidade virtual. Dos atendidos pelo formato virtual, 98% consideraram que suas expectativas foram atendidas neste modelo.
Esse resultado corrobora com estudos anteriores[6] abordando a utilização de sistemas de telemedicina, que podem ser utilizados para o acompanhamento de pacientes com doenças crônicas em suas próprias residências, o que leva à redução de custos em hospitalização, garante reação a emergências com a urgência necessária e oferece conforto ao paciente. O Quadro 1 mostra alguns elementos importantes indicados como potencialidades e desafios.
Quadro 1. Uso da telemedicina: potencialidades e desafios
Fonte: Elaborado pelos autores.
O Quadro 1 mostra que as potencialidades são mais numerosas do que os desafios, chamando atenção para três delas: o acesso à consulta em tempo oportuno, o fortalecimento de vínculos e a organização da demanda. Isso fortalece os ganhos comerciais desse serviço, além de sua utilidade para a continuidade do cuidado e monitoramento dos pacientes.
Segundo Batista[10], os benefícios para a administração hospitalar são muitos, pois o atendimento ganha agilidade e qualidade, e os gestores de saúde podem organizar melhor o trabalho nas clínicas e hospitais. Esse resultado fortalece a imagem da telemedicina como ferramenta potente, sendo possível sua adoção como uma tecnologia futura em vários setores do mercado consumidor, com baixo investimento e alto retorno. O Quadro 2 mostra as potencialidades e os desafios encontrados com relação ao uso da telemedicina no âmbito da saúde, de acordo com estudos selecionados.
Quadro 2. Estudos que mostram potencialidades e desafio no uso da telemedicina
Fonte: Elaborado pelos autores.
Como é possível visualizar acima, os estudos sobre esse tema ainda são escassos, mas é possível observar que a telemedicina está ganhando espaço e que os desafios que ela enfrenta não se sobrepõem às suas potencialidades. A ferramenta tem potencial para fortalecer a segurança e a qualidade da assistência e, com a evolução dos meios de comunicação, é possível que essa modalidade ofereça novas fontes de receita aos hospitais. Em resumo, a pesquisa revelou que a telemedicina é uma estratégia a ser utilizada para o cuidado continuado de forma remota. Nos dados obtidos ficou claro que os serviços não perderam qualidade e que o tempo de espera pelo atendimento foi reduzido, levando à satisfação do hospital e dos demais envolvidos. Entre os desafios apontados vale a pena destacar a necessidade de facilitar o acesso das pessoas idosas aos equipamentos de telecomunicação.
Referências
[1] Melo D.O.; Ribeiro T.B.; Grezzana G.B.; Stein A. T. covid-19 e doença hipertensiva no Brasil: possibilidade de uma tempestade perfeita. Rev. bras. epidemiol. 2020; 23:1-4. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-549720200062.
[2] Uehara C. A. Posicionamento sobre covid-19. Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. 2020. Disponível em: https://sbgg.org.br/posicionamento-sobre-covid-19-sociedade-brasileira-de-geriatria-e-gerontologia-sbgg-atualizacao-15-03-2020/. Acesso em: 19 jan. 2021.
[3] Garcia S.; Albaghdadi M. S.; Meraj P.M. et al. Reduction in ST-Segment Elevation cardiac catheterization laboratory activations in the United States during covid-19 pandemic. J Am Coll Cardiol. 2020; 75(22): 2871-2872. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jacc.2020.04.011.
[4] Brasil. Portaria nº 467, de 20 de março de 2020. Dispõe, em caráter excepcional e temporário, sobre as ações de telemedicina, com o objetivo de regulamentar e operacionalizar as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional previstas no art. 3º da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, decorrente da epidemia de covid-19. Ministério da Saúde, Gabinete do Ministro. Diário Oficial da União. 2020 mar. 23 (edição 56-B, seção 1). Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-467-de-20-de-marco-de-2020-249312996. Acesso em: 19 jan. 2021.
[5] Blardone S. Telemedicina: qué es y para qué se utiliza? Infobae. 2017. Disponível em: https://www.infobae.com/2013/11/17/1524294-telemedicina-que-es-y-que-se-utiliza/. Acesso em: 19 jan. 2021.
[6] Valerio Netto A.; Tateyama A.G.P. Avaliação de tecnologia de telemonitoramento e biotelemetria para o cuidado híbrido para o idoso com condição crônica. Journal Health Inform. 2018; 10(4): 103-111. Disponível em: https://jhi.sbis.org.br/index.php/jhi-sbis/article/view/602. Acesso em: 19 jan. 2021.
[7] Gil A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 6ed. São Paulo (SP): Atlas; 2019. 175 p.
[8] Oliveira M.M. Como fazer pesquisa qualitativa. 7ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2018. 232 p.
[9] Minayo M.C.S. O Desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10ed. São Paulo (SP): Hucitec; 2007. 406 p.
[10] Batista V. A telemedicina a serviço da administração hospitalar. Portal telemedicina. 2018. Disponível em: https://portaltelemedicina.com.br/blog/author/veronica. Acesso em: 19 jan. 2021.
[11] Caetano R.; Silva A.B.; Guedes A.C.C.M.; Paiva C.C.N.D.; Ribeiro G.D.R.; Santos D.L.; Silva R.M.D. Desafios e oportunidades para telessaúde em tempos da pandemia pela covid-19: uma reflexão sobre os espaços e iniciativas no contexto brasileiro. Caderno Saúde Pública. 2020; 36(5): e00088920. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00088920. Acesso em: 19 jan. 2021.
[12] Binda Filho D. L.; Zaganelli M.V. Telemedicina Em Tempos De Pandemia: Serviços Remotos De Atenção À Saúde No Contexto Da covid-19. Humanidades E Tecnologia (FINOM). 2020; 25(1). Disponível em: http://revistas.icesp.br/index.php/FINOM_Humanidade_Tecnologia/article/view/1290. Acesso em: 19 jan. 2021.
[13] Kosiak D. Os desafios da implantação da telemedicina. Portal Saúde Business. 2015. Disponível em: https://www.saudebusiness.com/ti-e-inovao/os-desafios-da-implantao-da-telemedicina. Acesso em: 19 jan. 2021.
Como citar
Pereira A. A.; Zago B. F. F. Processo de implantação da telemedicina em um hospital da rede privada em tempos de covid-19. Revista E&S. 2024; 5: e20230059.
Sobre os autores
Átilla Arruda Pereira , Avenida Moaci, 534, Apto 93ª – Planalto Paulista – CEP 04083-001 – São Paulo/SP, Brasil.
Bethania Fernandes da Fonseca Zago, Rua Arlindo Béttio, 1000 – Vila Guaraciaba – CEP 03828-000 – São Paulo/SP, Brasil.
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