Blockchain e compliance como ferramenta nas organizações: bibliometria e análise quantitativa
24 de novembro de 2022
8 min de leitura
DOI: 10.22167/2675-6528-20220034
E&S 2022,3: e20220034
Raphael Ewandyr Aguiar
Hoje, na sociedade moderna, a globalização é vista como um fenômeno natural e único, por permitir maior abertura dos mercados e ampliar significativamente o potencial de oferta de bens e serviços por cadeias logísticas que extrapolam os limites geopolíticos dos países[1].
As organizações modernas são caracterizadas como um sistema constituído de elementos interativos que recebem entradas do ambiente, transformando-os e, posteriormente, emitindo saídas para o ambiente externo. Nesse sentido, os elementos interativos da organização – pessoas e departamentos – dependem uns dos outros e devem trabalhar juntos. Anteriormente, as organizações eram compreendidas como ambientes fechados, que não sofriam influência do ambiente do qual faziam parte. É importante ressaltar, contudo, que organizações flexíveis tendem a se adequar mais rapidamente às mudanças ambientais, enquanto organizações rígidas, como as altamente hierárquicas (com uma cultura mais conservadora, por exemplo), tendem a ser mais resistentes a mudanças ou adaptar-se a elas mais lentamente[2].
Então, as empresas passaram a realizar compras, vendas e investimentos em países diferentes, gerando a necessidade de transações entre empresas e mercados internacionais[1]. Concomitante à abrangência do mercado, ergue-se a inevitabilidade de construção de uma segurança institucional nas relações comerciais e produtivas, considerando os aspectos éticos, morais e legais dos agentes econômicos[3].
Com isso, o sistema de compliance auxilia as empresas na construção dessa segurança institucional, a fim de fortalecer os aspectos tangíveis e não tangíveis, de modo a proporcionar maior credibilidade junto a seus clientes, fornecedores e investidores. Esse sistema faz-se cumprir por meio de um conjunto de disciplinas, normas legais e regulamentares e políticas estabelecidas, bem como suas diretrizes, detectando qualquer inconformidade em suas atividades. Isso pressiona as empresas a pensarem de modo cada vez mais global, desenhando suas estratégias com foco na redução de custos e perdas com erros provenientes de processos não conformes[4].
Nesse âmbito, surge a blockchain, uma tecnologia na qual todos os computadores ligados ao sistema possuem informações sobre as atividades nele registradas de maneira criptografada, a partir de um processo chamado “ledger”, com o objetivo de garantir a confiabilidade de toda e qualquer tipo de movimentação por ele registrada[5].
Mediante a necessidade de as organizações identificarem os principais riscos a que estão expostas, dado o ambiente de negócios complexo, tem-se demonstrado cada vez mais a necessidade de um processo de avaliação amplo e contínuo[4]. Isso ocorre porque o risco é um acontecimento negativo no alcance de um objetivo. Sendo assim, a violação de leis e procedimentos regulatórios pode gerar diversas consequências, tais como perdas financeiras e danos à reputação, devido ao descumprimento de normas, códigos de conduta, leis e políticas internas[6].
Tratando-se de gestão de risco, a blockchain fortalece seu gerenciamento porque para que uma transação seja considerada válida e ocorra, de fato, é necessário que 50% mais 1 (um) dos participantes inseridos na rede entrem em consenso. Nesse caso, faz-se viável que a maioria, e não o todo, seja responsável pela validação de determinada transação, a fim de garantir que transações falsas não sejam validadas[7].
Geralmente, as blockchains descentralizadas funcionam com o escopo de gerenciar a rede e aprovar transações, ou seja, em vez de a transação ser aprovada por um único indivíduo, preservando o banco de dados, essa validação é distribuída entre todas as pessoas conectadas à rede. Desse modo, o aceite ou não de uma transação feita na blockchain ocorre por intermédio da opinião de todas as pessoas a ela conectadas[7]. Posto isso, a blockchain enriquece o desdobramento da transparência do compliance, uma vez que essa transparência pode ser traduzida pelo processo de fornecimento de informações que sejam relevantes às partes interessadas e não somente pela disponibilização do que é obrigatório por leis ou regulamentos[4].
Nesse sentido, visando a segurança da organização, uma das funcionalidades da blockchain é a criação de “smart contracts” (contratos inteligentes), contratos autoexecutáveis que não necessitam de intermediários[8].
Os contratos inteligentes (Figura 1) são operados em uma blockchain ou distribuídos em “ledger”, escritos em códigos de computador. Além disso, são verificados, executados e impostos com base nos termos escritos em seu código, podendo ser parcialmente ou totalmente autoexecutáveis e autoaplicáveis. Portanto, diferentemente de um contrato tradicional, que é escrito somente em uma linguagem jurídico-legal, o contrato inteligente, na condição de um protocolo de computador autoexecutável, é capaz de obter informações processando-as e tomando as devidas ações previstas de acordo com as regras nele estipuladas[7].
Figura 1. Protocolo “Smart Contracts”
Fonte: Cardoso[8].
Para que o que as informações obtidas sejam processadas e tomadas as devidas ações previstas de acordo com as regras no contrato inteligente estipuladas, as cláusulas precisam ser parcialmente ou completamente autoexecutáveis, auto-obrigatórias ou ambos. A partir do momento em que essas condições são atendidas, o contrato inteligente pode prosseguir com a conclusão automática das transações. Diferentemente dos contratos físicos, os contratos inteligentes apresentam maior segurança, levando-se em conta que os contratos tradicionais são constituídos de uma linguagem jurídica, suscetível a múltiplas interpretações, cuja validação é passível de um sistema judicial público que, na maioria das vezes, é caro, demorado e ineficiente. Em contrapartida, os contratos inteligentes são escritos em uma linguagem de programação inalterável e apresentam-se de forma inteiramente digital, estatelando obrigações e consequências do mesmo modo que o documento físico tradicional, mas com a possibilidade de ter seu código executado automaticamente[8].
O potencial da aplicação da blockchain no compliance é enorme, além de apresentar inúmeras vantagens especificamente ao compliance. Auditores, internos ou externos, realizariam a validação de processos em tempo real, reduzindo drasticamente o esforço e o tempo investido na obtenção das informações. A blockchain pode contribuir, ainda, para a prevenção de fraudes, uma vez que as operações registradas na blockchain não permitirem adulteração[9].
É importante explanar que há, ainda, falta de clareza na regulamentação da tecnologia blockchain. Devido a sua complexidade, os órgãos reguladores vêm encontrando dificuldade em definir um ambiente legal para a tecnologia, sendo difícil para as autoridades obterem a jurisdição de modo claro, bem como as obrigações legais sobre as partes envolvidas na transação[10].
Assim, por se tratar de um tema recente, o conhecimento científico pode colaborar com o entendimento sobre a aplicação da blockchain como uma ferramenta de compliance. Portanto, no presente estudo, buscou-se mapear os artigos tanto sobre blockchain quanto sobre compliance, com o objetivo de analisar se os temas encontram-se entre os “trending topics” na academia. Realizou-se uma consulta junto às bases das plataformas, Web of Science e Scopus, a partir de algumas expressões de busca, utilizando as palavras-chaves “blockchain” e “compliance”, para os índices – título do artigo – em um intervalo de cinco anos (de 2017 a 2021). O intervalo foi definido a partir de 2017, dado que a utilização das palavras-chave citadas acima não resultou em nenhum registro de artigos nessas bases de dados em anos anteriores. Analisou-se a quantidade de artigos publicados por ano, o total de artigos por base em cada ano do período analisado, a qual grande área de estudo os artigos se referem, bem como a procedência geográfica desses artigos.
A partir dos dados levantados, uma planilha estruturada com os seguintes campos foi elaborada: termos pesquisados, ano da publicação, país, área de conhecimento e resultados. A análise iniciou-se pela distribuição dos artigos encontrados nas bases de dados pesquisadas por ano (Figura 2). Desse modo, observou-se que em 2017 foram publicados três artigos (3,33%), em 2018, onze artigos (12,22%), no ano de 2019, vinte e nove artigos (32,22%), em 2020, vinte e cinco artigos (27,77%) e, finalmente, em 2021, vinte e dois artigos (24,44%).
Figura 2. Quantidade de artigos publicados nas bases de dados Scopus e Web of Science de 2017 a 2021
Fonte: Elaborado pelo autor
No ano de 2019 foram publicados 29 artigos, o maior número encontrado no corpus analisado. Assim, após uma baixa nos anos anteriores, é possível observar aumento do interesse dos pesquisadores sobre os temas blockchain e compliance.
O maior volume de artigos foi encontrado na base Scopus. A seguir apresenta-se um resumo (Tabela 1) do total de artigos encontrados com base nos filtros mencionados nos parágrafos anteriores em cada base de pesquisa por ano.
Tabela 1. Total anual de artigos por base de dados
Base de dados | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | Total |
Web of Science | 1 | 3 | 10 | 7 | 6 | 27 |
Scopus | 1 | 6 | 12 | 7 | 10 | 36 |
Total | 2 | 9 | 22 | 14 | 16 | 63 |
Fonte: Elaborado pelo autor
As porcentagens da distribuição dos artigos analisados por grande área de conhecimento são apresentadas na Figura 3.
Figura 3. Distribuição do total de artigos levantados nas bases das Scopus e Web of Science por grandes áreas
Fonte: Elaborado pelo autor
Nota: Distribuição baseada na Tabela de áreas de conhecimento/avaliação da CAPES[11].
Observa-se que 47% dos artigos são da área de ciências exatas e da terra, seguidos de 21% da área de ciências sociais aplicadas, 11% da área da saúde e na área de engenharias e, 5% da de linguística, letras e artes e da área de ciências biológicas. Sendo a maioria destes artigos da América do Norte (Figura 4).
Figura 4. Procedência geográfica dos artigos analisados
Fonte: Elaborado pelo autor
Observou-se que a maioria dos artigos pertence à região dos Estados Unidos (24), seguidos pela Índia (8), Reino Unido (7), Inglaterra e Alemanha (4), Arábia Saudita, Itália e Austrália (3), Áustria, Suíça e Suécia (2), Estônia, Japão, Espanha, País de Gales, Emirados Árabes Unidos, China e Uruguai (1). Vale ressaltar que o número de artigos por país é maior que o número de artigos encontrados, uma vez que um ou mais artigos representam mais de um país quando analisados nas bases pesquisadas.
Os resultados apontam o baixo volume de estudos sobre o tema ao redor do mundo, com artigos desenvolvidos somente a partir de 2017.
Todavia, é possível observar o fortalecimento do compliance, dada a possibilidade de torná-lo mais eficiente e eficaz por meio da blockchain, uma vez que a tecnologia trabalha com um modelo de rede descentralizada, diferentemente do modelo cliente-servidor. Além disso, a blockchain tem sua base de dados criptografada e necessita que toda e qualquer nova informação nela inserida seja validada pelos nós – integrantes da rede –, evitando a validação de informações falsas. Assim, a blockchain torna o compliance mais robusto, gerando mais segurança institucional para as organizações, tornando-as mais confiáveis, visto que a tecnologia funciona como um livro-razão público.
Percebe-se, também, que há alguns empecilhos na aplicação da blockchain como ferramenta de compliance, como é o caso da própria questão da regulamentação, que não trata as regras para o uso da tecnologia de forma clara.
Portanto, devido às questões regulatórias, à falta de adequação às regulamentações existentes e de estudos científicos acerca do tema, são muitas as dificuldades para a aplicação por completo da blockchain como uma ferramenta de compliance. Contudo, é perceptível o valor que a blockchain pode agregar ao compliance, promovendo mais transparência às informações e maior integridade às organizações, por meio de registros de dados públicos, divulgação de programas de conformidade, por exemplo, o que favorece a gestão por reduzir a maioria dos trâmites administrativos.
Referências
[1] Silva N.M. Geografia regional do mundo I. 2011. Editora EDUFRN, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil.
[2] Barbosa R. Características básicas das organizações formais modernas: tipos de estrutura organizacional, natureza, finalidades e critérios de departamentalização. 2014. Disponível em: < https://pt.slideshare.net/deborasoaresteodoro/caractersticas-bsicas-das-organizaes-formais-modernas-apostila>.
[3] Théret B.; Braga J.C.S. Regulação econômica e globalização. 1998. Editora UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil.
[4] Instituto Brasileiro De Governança Corporativa (IBGC). Código das melhores práticas de governança corporativa. 5ed. 2015.Editora IBGC, São Paulo, SP, Brasil.
[5] Wester L. Blockchain maximalist: the very structure of society is about to chance. 2018. Editora OnePeople.io, Ventura, California, Estados Unidos.
[6] Serpa A.C. Compliance descomplicado. Um guia simples e direto sobre programas de compliance. 1ed. 2016. Editora CreateSpace Independent Pub.
[7] Gates M. Blockchain: Ultimate guide to understanding “blockchain”, bitcoin, cryptocurrencies, smart contracts and the future of money. 2017. CreateSpace Independent Publishing Platform. Disponível em: <https://www.pdfdrive.com/blockchain-ultimate-guide-to-understanding-blockchain-bitcoin-cryptocurrencies-smart-contracts-and-the-future-of-money-d176310394.html>.
[8] Cardoso B. Contratos Inteligentes: descubra o que são e como funcionam. Advogado Bruno Cardoso; 2018. Disponível em: <https://brunocardosoadv.com/contratos-inteligentes/#t2>.
[9] Legal, Ethics & Compliance (LEC). Os efeitos da blockchain para o compliance no mercado financeiro. LEC; 2018. Disponível em: <http://www.lecnews.com.br/blog/os-efeitos-do-blockchain-para-o-compliance-no-mercado-financeiro/>.
[10] Lamounier L. Os 10 principais desafios para implementar “blockchain” nas empresas. 101 Blockchains; 2019. Disponível em: <https://101blockchains.com/pt/implementacao-da-blockchain-empresarial/#prettyPhoto>.
[11] Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Tabela de áreas de conhecimento/avaliação. 2022. Disponível em: < https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/avaliacao/instrumentos/documentos-de-apoio-1/tabela-de-areas-de-conhecimento-avaliacao>.
Como citar
Aguiar R.E. Blockchain e compliance como ferramenta nas organizações: bibliometria e análise quantitativa. Revista E&S. 2022; 3: e20220034.
Sobre o autor
Raphael Ewandyr Aguiar, Administrador e Especialista em Gestão de negócios, Juiz de Fora, Mg, Brasil.
Editorado por: Edson Pereira da Mota
Link para download: https://revistaes.com.br/wp-content/uploads/2022/11/ES_34.pdf