Por que a IA não vai substituir meu trabalho de revisora?
9 de abril de 2024
8 min de leitura
Tradutores têm utilizado CAT Tools há muitos anos, e seu papel sempre foi complementar
Uma das coisas que mais ouvi desde que escolhi a profissão de tradutora e revisora foi a pergunta sobre se eu estava preocupada com a possibilidade de as ferramentas de IA (Inteligência Artificial) tomarem meu espaço no mercado de trabalho.
A verdade é que, se esse tipo de tecnologia realmente ameaçasse o meu emprego, o corretor ortográfico do Word já teria me impedido de chegar até aqui. Afinal, se ele consegue corrigir todos os erros de um texto, por que seria necessário um controle de qualidade humano?
Analisando cuidadosamente a trajetória do setor de revisão e tradução, é possível perceber que as IAs não trazem nada de inédito nessa área. Tradutores têm utilizado CAT Tools (ferramentas de Tradução Assistida por Computador) há muitos anos, e seu papel sempre foi complementar.
Conforme Nino Vukalović (2021), podemos dividir a evolução das CAT Tools em dois principais períodos: a fase clássica (1995 – 2005), quando essas ferramentas começaram a se tornar mais acessíveis para uso comercial, e a fase moderna (2005 – atualidade), caracterizada pelo aumento da quantidade de dados alimentando essas ferramentas e pela simplificação das interfaces de usuário.
No mercado de trabalho atual, é praticamente impossível para um revisor não usar essas ferramentas, que servem para facilitar o trabalho e dar precisão e agilidade ao processo de revisão e tradução. Imagine um cliente pedindo um trabalho de copywriting com urgência de 24 horas, e um profissional oferecendo um prazo de cinco dias, porque considera a IA como uma inimiga mortal. Sem condições!
Considerando a automatização contemporânea e a evolução das tecnologias em todas as áreas, não faria sentido rotular a IA como vilã. Pelo contrário, imagino que minha rotina profissional seria muito mais difícil sem a ajuda dela. É perfeitamente possível enxergar a IA como uma colega de trabalho, até. Um erro recorrente é pensar que a tecnologia dá conta de fazer todo o processo sozinha, ao lado de todas as suas outras vantagens, como a precisão e a rapidez, já que ela não se cansa, não dorme e não come.
O problema é que a IA falha exatamente na base da teoria fundamentalista da tradução, a qual enfatiza a importância da atenção ao “quando”, “onde”, “como”, “por que”, “para quem” e “por quem”. Ou seja, a literatura da área postula que a boa tradução deve ser guiada pela compreensão de um contexto, que inclui o propósito a ser cumprido e os usos e códigos da cultura do público-alvo. Ela depende, também, da ponte entre as nuances culturais que, até o momento, apenas a inteligência humana propõe com excelência.
Como em todas as situações, há (várias) vantagens e (algumas) desvantagens em utilizar a IA no mundo da tradução e da revisão. Primeiramente, as vantagens: 1) mais velocidade no processo tradutório; 2) resultados cada vez mais precisos; 3) capacidade de se autocorrigir; e 4) custo menor; esta última, devido ao fato de que a inteligência artificial não requer descanso, lazer ou auxílios alimentação e mobilidade, entre outros. Isso torna o custo-benefício associado à entrega a longo prazo mais econômico em alguns casos (o que, convenhamos, é mais do que uma mãozinha na vida de qualquer um).
No campo das desvantagens é necessário citar que a IA ainda peca muito nos três “Ws” da tradução: When (quando), Where (onde) e Who (quem), de uma maneira bem resumida. Ao realizar qualquer tipo de tradução ou de revisão, é necessário analisar aspectos que vão além dos fatores linguísticos (os chamados fatores extralinguísticos), tais como códigos culturais, como aquele texto se encaixa na linha do tempo e qual é o público-alvo. Por isso, por exemplo, é muito comum o dublador ter que alterar o que o tradutor optou por colocar no script, já que este tem acesso apenas ao texto, enquanto o dublador tem a visão mais ampla e detalhada da situação.
Em uma entrevista para a rede CNN, o professor da NYU Stern School of Business Scott Galloway afirmou que os algoritmos das ferramentas de tradução simplesmente rearranjam as informações de maneira eloquente, pois não possuem a capacidade de ser criativos – além de ainda estarem sujeitos a uma certa margem de erro nas informações compactadas por eles.
Erros minúsculos, sejam quais forem, em áreas como medicina e direito são fatais, podendo até gerar consequências judiciais em certos casos. Nenhum gestor, não importa a área, pode se dar ao luxo de depender solenemente de uma inteligência artificial para realizar suas funções. Por que seria diferente para um revisor e tradutor?
Primórdios
Os primeiros sinais do aparecimento da inteligência artificial surgiram em meados de 1950, porém, de uma maneira bem limitada. O processo ficou muito mais interessante e produtivo por volta da década de 1980, com o aprimoramento dos estudos (e a volta da atenção dos estudiosos para essa área de pesquisa) em Rede Neural Artificial (RNA) e Processamento de Linguagem Natural (PLN), que tiveram um avanço substancial. Leandro Silva (1998) afirma que o evento que deu destaque à área de RNA foi “o desenvolvimento de um método para ajuste de parâmetros de redes não-recorrentes de múltiplas camadas” (Silva, p.14), baseado em um algoritmo chamado retro-programação, e o lançamento, em1986, do livro “Parallel Distributed Processing”.
O progresso da internet nos últimos anos possibilitou o acesso a uma grande (senão enorme) quantidade de dados, e isso impactou a área de tradução também. O propósito dos algoritmos de IA em reproduzir comportamentos semelhantes aos originados pelo cérebro humano tem sido alcançado gradativamente, mas ainda há um motivo pelo qual nem mesmo a Microsoft permite que seus contratos sejam traduzidos diretamente pelo ChatGPT sem a participação de um revisor.
Os modelos atuais de IA ainda falham no mesmo ponto em que os antigos: cometem erros no teste de ambiguidade semântica, tema que é – e será por um bom tempo – de responsabilidade do revisor humano. O ideal acaba sendo uma situação híbrida: tradução/revisão neuronal com pós-edição humana. São os tradutores de carne e osso que realizam a adequação cultural, comparam idiomas com particularidades diferentes e realizam a adaptação de códigos linguísticos e culturais para o leitor.
Uma maneira simples de visionar a problemática em questão é aplicando a mesma frase, sem contexto prévio, em dois canais de comunicação diferentes. Há alguns dias me deparei com um texto que dizia que a frase “o banco quebrou” pode ter diferentes interpretações dependendo do contexto. De fato, ler a sentença “o banco quebrou” nos trends internacionais do X (antigo Twitter) daria margem para concluir que houve algum problema relacionado a uma instituição financeira, muito provavelmente.
Por outro lado, se alguém receber essa mesma mensagem do avô, é provável que imagine se tratar de um assento quebrado. A IA ainda não tem a capacidade de interpretar uma frase ambígua e traduzir de maneira fiel, pois a única maneira de entender o contexto nesse caso é conhecendo o remetente.
A IA é boca de 09, não?
Depende. Como supracitado, a IA ainda é falha do ponto de vista dos aspectos culturais derivados de regiões menos conhecidas ou dos fatores linguísticos. Assim como qualquer algoritmo, ela depende de dados prévios de modelos e de treinamento – os quais, voilá, dependem da qualidade do controle do olho humano. O reconhecimento de padrões, nuances e complexidades linguísticas e culturais de uma certa regionalidade ainda é necessário, principalmente com aquelas mais desprovidas de popularidade – a língua Maori (falada pelo povo maori, nativo da Nova Zelândia), por exemplo.
Fiz alguns testes por conta própria com o ChatGPT e o Bard em relação às expressões idiomáticas do Sudeste e do Nordeste do Brasil, em específico. Com isso, obtive três tipos de resultados diferentes: a resposta correta, a resposta errada e a “desistência”, ou seja, a IA admitindo que não havia resposta concreta para a pergunta.
A primeira expressão escolhida foi “capotar o Corsa” (perder o controle de algo; dormir), muito utilizada no Sudeste brasileiro. O ChatGPT me indicou que “é uma expressão coloquial usada para se referir a um acidente de carro”, que no inglês poderia ser colocada como “to flip the Corsa” (virar o corsa em português). O Bard, por outro lado, indiciou que a expressão “to go up in flames” (virar fumaça), a qual significa ser completamente destruído (literalmente ou coloquialmente), seria um equivalente à altura. Bom, me colocando no lugar de um estrangeiro que apenas gostaria de entender o que seu amigo brasileiro estava dizendo, eu certamente ficaria confusa. Ou pior, preocupada com um possível acidente automobilístico.
O segundo exemplo aplicado foi a expressão baiana “lá ele”, também muito utilizada e popularizada on-line. A primeira plataforma (ChatGPT) indicou que não há uma equivalência direta em inglês e que, se estiver “sendo usada de forma descontraída”, pode ser traduzida como “there he goes“” (lá vai ele, no português). O Bard acabou indicando um resultado parecido, mas ainda assim errado: “sure thing” (com certeza). A expressão, na verdade, é utilizada em um contexto informal de negação, usualmente para contestar uma frase com duplo sentido direcionada a alguém. De maneira resumida, seria um “eu não!” ou o famoso “me erra” do Sudeste.
Por último, utilizei outra expressão da região da Bahia, a qual originou o subtítulo dessa seção: “boca de 09”. A princípio, ela remete muito à expressão “X9”, a qual indica uma pessoa que não sabe guardar segredo. Acredito que o algoritmo da IA acabou seguindo essa mesma linha de pensamento, pois o Bard entregou “chatterbox” (tagarela) como equivalente direta da expressão. O ChatGPT apenas indicou que não havia equivalentes na língua inglesa e que seria necessário mais contexto para entregar uma resposta concreta. “Boca de 09” (lido como boca de zero nove) se refere, na verdade, a algo de extrema qualidade ou eficiente.
IA, a vilã dos novos tempos
É claro que ainda há um longo caminho a ser percorrido até que as IAs substituam o entendimento contextual, a criatividade e as modificações que não se baseiam em repetição de padrões ou lógica, mas sim em circunstâncias que demandam criatividade e interpretações mais livres, pertencentes exclusivamente ao conhecimento humano até o momento. É a parceria entre o humano e a IA que pode levar a resultados mais precisos e eficientes no que diz respeito à relação prazo versus qualidade.
Enquanto as inteligências artificiais ainda saem das fraldas, é provável que a posição dos revisores esteja mais do que segura. A fase de enxergar a IA como a vilã do século já passou; por mais que exista a possibilidade de ela ser utilizada para fins “não-tão-legais”, essa tecnologia não passa de uma ferramenta complementar a quase todas as áreas. No caso da tradução, além de juntar palavras, é necessário o toque da emoção e da sinceridade do olhar humano, da ironia, da sátira – e tudo de maneira coesa.
Embora a IA ainda tenha um longo caminho a percorrer antes de alcançar o nível “sabe-tudo” que muitos acham que ela já tem, é inegável o valor que essa tecnologia agrega ao nosso dia a dia. A parceria entre humano e IA surge como uma abordagem promissora, capaz de unir o melhor dos dois mundos. Assim, enquanto as IAs continuam a evoluir, é evidente que o papel do revisor permanece fundamental, pois a complementaridade entre a tecnologia e o talento humano é essencial para alcançar resultados de qualidade e relevância. Esta simbiose entre homem e máquina promete não apenas otimizar processos, mas também enriquecer e aprimorar a experiência humana em diversos campos, abrindo portas para novas possibilidades e descobertas.
É importante relembrar que depender apenas do conhecimento artificial é, na verdade, gerar apenas mais conhecimento artificial.
Este conteúdo foi produzido por:
Isabela Talita Segredo
Gerente de projetos e tradutora na Skylar, onde desempenha sua função em demandas relacionadas à frente Skylar Business. Trabalhou como professora de língua inglesa por quatro anos antes de migrar para o campo da tradução e legendagem. Seu foco de pesquisa e interesse está na Tradução Audiovisual, com especial destaque para a dublagem e a transposição cultural em aspectos extralinguísticos.