Onde está a clareza?
19 de março de 2024
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A ortografia não é nem de longe o item mais importante de um texto
Pode soar estranho, mas a escrita é uma tecnologia – e das mais antigas! Sua função é facilitar a troca de informações. Funciona através de códigos, que devem ser manipulados com muita prática, e seu poder de transmitir ideias ou conceitos é insuperável. Como toda tecnologia, porém, quando mal-usada, a escrita pode causar estragos; no caso, mal-entendidos. No âmbito da ciência o dano pode ser ainda maior.
Nenhuma descoberta científica é considerada completa se não for descrita e publicada. Portanto, escrever faz parte do dia a dia do pesquisador. Mas a falta de clareza em um artigo pode acarretar descrédito para o cientista e colocar em risco as funções básicas do seu trabalho: melhorar algum processo, transmitir conhecimento científico, gerar desenvolvimento para a sociedade.
Qual é, então, o segredo para escrever com clareza? Um autor iniciante, ao pesquisar na internet atrás dessa resposta, com certeza vai encontrar uma infinidade de dicas pontuais: “por que ou porque?”; “entrega a domicílio ou entrega em domicílio?”, a maioria enveredando para as regras gramaticais.
Porém a ideia de que saber escrever de acordo com as normas gramaticais é o fator que mais contribui para a clareza de um texto não é uma unanimidade. “A ortografia não é nem de longe o item mais importante de um texto”, costuma dizer o professor de português e gramático Pasquale Cipro Neto. O escritor Luís Fernando Veríssimo, autor de “Comédias da Vida Privada (1994)”, foi mais longe na crônica “O Gigolô das palavras” e ironizou: “A gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de latim…”.
Respeitar as regras gramaticais pode não ser uma condição sine quo no (algo como “indispensável”, em latim), mas é um bom começo, pelo menos “para evitar os vexames mais gritantes”, como escreveu Veríssimo. Porém, a fluidez e a clareza do texto estão intimamente atreladas a outro fator em especial: a coesão. Sem ela o conteúdo corre o risco de perder o interesse do leitor.
Segundo a doutora em linguística Irandé Antunes, o mais importante no começo da elaboração de um texto é entender como organizá-lo e deixá-lo coeso. Para ajudar na organização, ela sugere a separação dos tópicos entre “o que é nuclear e o que é periférico”; em prol da coesão, recomenda o uso de elementos linguísticos para “costurar” as ideias, os chamados conectores. São as preposições, as conjunções e os advérbios que ajudam o leitor a seguir o encadeamento de conceitos do autor. Em seu livro “Lutar com as palavras: coesão e coerência”, a autora enumera outros pontos relevantes para organizar as ideias do texto:
- defender um ponto de vista;
- orientar uma argumentação;
- fazer uma ressalva;
- apresentar uma justificativa;
- dar uma explicação;
- emitir um parecer;
- vender uma ideia.
Tudo isso tem como finalidade beneficiar aquela que é a variável mais importante do processo da boa escrita: o leitor. Um texto rebuscado, cheio de informações e referências, mas cuja mensagem não fica clara para o leitor, é um texto ruim e fadado ao desinteresse ou esquecimento. Desse modo, a primeira preocupação do autor, antes mesmo de tocar no teclado ou pegar a caneta, deve ser responder às seguintes perguntas:
- para quem estou escrevendo?
- qual a intenção do texto?
Muitas das decisões linguísticas que o autor vai tomar daí em diante deverão estar embasadas por essas duas respostas.
Também consta da lista de prioridades a construção da ideia central em torno da qual os parágrafos serão alinhavados. Em sua obra, Irandé Antunes classifica o ato de escrever como “uma atividade tematicamente orientada”, que tem um ponto de chegada para o qual as frases, parágrafos ou capítulos vão-se encaminhando. E perdê-lo também pode resultar em prejuízo no relacionamento com o leitor.
Redação científica
Nem mesmo entender profundamente o tema é garantia de um texto bem redigido. “Não se pode continuar com o pensamento simplista, talvez ingênuo, de que o mestrando ou o doutorando, após cumprir certa quantidade de disciplinas, participar de alguns congressos, observar ou realizar experimentos, esteja apto a redigir dissertação ou tese e até mesmo submeter artigo a ser publicado”, afirma o professor Pedro Reiz no livro “Manual de Técnicas de Redação Científica”. Na obra, o autor lista as principais deficiências encontradas nos textos científicos. Algumas delas foram reproduzidas a seguir, e funcionam como avisos sobre o que evitar ao escrever artigos.
Segundo Valtencir Zucolotto, presidente do comitê gestor do Portal de Escrita Científica da USP de São Carlos (SP), um dos problemas da produção científica no Brasil é que o pesquisador desconhece que tipo de informação deve constar em cada uma das seções de um artigo científico. O portal da USP/São Carlos tem vários materiais de apoio na área, incluindo minicursos, ferramentas de escrita e palestras para ajudar os pesquisadores.
O escritor inglês George Orwell – outro especialista das palavras – ofereceu alguns conselhos aos interessados em escrever, independentemente da língua e do gênero escolhido. As dicas do autor de “1984” e “A Revolução dos Bichos” foram transformadas na abertura do guia de estilo da prestigiosa revista The Economist. São seis “normas”, originalmente publicadas em um artigo da revista Horizon, em 1946. Três delas cabem aqui, pois podem ajudar na fluidez de qualquer tipo de texto: “Nunca use metáfora, comparação ou frase feita que esteja acostumado a ver escrita”; “nunca use uma palavra comprida se puder usar uma mais curta com o mesmo significado”; “sempre que for possível cortar uma palavra, corte”.
As sugestões são valiosas no sentido de incentivar a escrita simples, leve e despretensiosa, que, por sua vez, facilita a leitura. Palavras em excesso (aquelas que, se retiradas, não mudam o sentido da frase) deixam o texto complexo e podem levar o leitor a perder o fio da meada.
Na Editora Pecege, o principal trabalho dos editores envolve justamente a adequação dos textos dos artigos enviados para publicação nas revistas Estratégias e Soluções (E&S) e Quaestum, para que fiquem no padrão do escopo das revistas e de acordo com a norma culta da língua. Acima de tudo, ambas as revistas prezam pela clareza, e sua política editorial recomenda que os manuscritos sejam redigidos de forma interessante e legível para vários tipos de leitores, profissionais do mercado, acadêmicos ou estudantes.
Mitos
Renunciar a algumas ideias preconcebidas ou mitos também pode ajudar no caminho do autor que tem ambição de escrever um texto claro. Um desses mitos é a crença de que pessoas que escrevem bem fazem isso de primeira, sem reformulações ou revisões. Isso é um equívoco. Um texto bem escrito costuma ser o resultado de uma boa revisão. Outra lenda muito evocada por quem tem o hábito de procrastinar na escrita é a “falta de inspiração”. Mas só a prática pode fazer essa “inspiração” brotar. O segredo é ler muito e escrever bastante, sem se importar com o estilo; o momento de se preocupar com ele é na revisão. “É o convívio com a leitura e com a escrita o que nos leva a memorizar e a automatizar a grafia de palavras complicadas como as que terminam em “são”, “ssão” ou “ção” (“ascensão”, “transmissão” e “contenção”, por exemplo)”, ensina o professor Pasquale.
Em resumo, ler com assiduidade, ter conhecimento sobre o tema, colocar-se no lugar do leitor (com empatia, imaginando, por exemplo, que ele pode não estar familiarizado com o assunto), revisar o que foi escrito e cortar tudo o que for possível são bons hábitos de escrita e têm o potencial de dar clareza a qualquer redação, aumentando as chances de o leitor chegar até o fim do texto.
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Este conteúdo foi produzido por:
Renata de Gáspari Valdejão Almeida
Editora assistente da Revista Estratégias e Soluções (E&S), da Editora Pecege. É jornalista, roteirista e pesquisadora. Trabalhou 16 anos na Folha de S.Paulo, como redatora e repórter, e colaborou com várias revistas de circulação nacional, como Época Negócios, Revista Pais & Filhos e Superinteressante. Atuou na área de comunicação da Faculdade de Medicina da USP e foi coordenadora de Audiovisual da UNA-SUS/UFMA, no Maranhão.