ESG e Oscar Wilde
30 de abril de 2024
8 min de leitura
Politização do ESG faz empresas abandonarem o uso da sigla
Há alguns dias, li uma notícia intrigante no “The Wall Street Journal”. Intitulada “Step Aside, ESG. BlackRock Is Doing ‘Transition Investing’ Now” (“Saia da frente, ESG. BlackRock está fazendo ‘Investimento de Transição’ agora”, em tradução livre). O subtítulo dos autores, Pitcher e Ramkumar (2024), ajudava a esclarecer: “O maior gestor mundial de ativos abandonou o acrônimo enquanto injeta bilhões de dólares em energia limpa”.
Isso me fez refletir um pouco sobre a história do ESG (sigla em inglês para Ambiental, Social e Governança, que define um conjunto de práticas voltadas ao ambiente e à sociedade) e sobre como chegamos à situação destacada pela notícia.
No ano de 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu 8 objetivos com 22 metas que visavam promover a dignidade humana e enfrentar, simultaneamente, a pobreza, a fome, as doenças, o analfabetismo, a degradação ambiental e a discriminação contra as mulheres até 2015. Aprovados pela Assembleia Geral, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram adotados por 189 países e 23 organizações internacionais. A Figura 1 mostra esses objetivos.
Por ter envolvido governos, acadêmicos, agências da ONU, sociedade civil e setor privado, resultados notáveis foram alcançados. Como consequência, em janeiro de 2015 começou na Assembleia Geral da ONU o processo de negociações da agenda de desenvolvimento pós-2015. Não é de surpreender que tudo tenha evoluído rapidamente e, em setembro daquele mesmo ano, durante a Cúpula do Desenvolvimento Sustentável, tenha sido apresentada a Agenda 2030 Para o Desenvolvimento Sustentável. No documento foram detalhados os novos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as suas respectivas 169 metas.
Fortemente baseados nos anteriores, os ODSs são mais amplos e inclusivos, contemplando as dimensões ambiental, social e econômica. A Figura 2 mostra os 17 ODSs.
A vez das empresas: o Pacto Global da ONU
No início dos anos 2000, em paralelo aos Objetivos do Milênio, o então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, lançou o Pacto Global, uma iniciativa de cidadania corporativa voluntária para estimular a adesão das empresas a princípios relacionados a direitos humanos, trabalho, ambiente e combate à corrupção.
O Pacto Global estabeleceu dez princípios baseados em quatro documentos basilares: (1) a Declaração Universal de Direitos Humanos, (2) a Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, (3) a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e (4) a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. As empresas deveriam:
Essa iniciativa continua viva e crescendo: quase 25 mil empresas em todo o mundo fazem parte dela. No Brasil, cerca de 2.300 companhias estão envolvidas, com a Natura tendo sido a pioneira, ainda em 2000.
O Surgimento do ESG
Consciente da influência que pares têm sobre seus pares, em 2004 Kofi Annan convidou 18 instituições financeiras de 9 países, gestoras de mais de US$ 6 trilhões em ativos, para “desenvolver orientações e recomendações sobre como melhor integrar temas ambientais, sociais e de governança corporativa na gestão de ativos, serviços de corretagem e funções de pesquisa associadas”. Divulgado no mesmo ano, o resultado foi um relatório da ONU (2004) chamado “Who Cares Wins: Connecting Financial Markets to a Changing World” (Quem Cuida, Ganha: Conectando os Mercados Financeiros a um Mundo em Mudança, em tradução livre). Foi nesse documento que surgiu a sigla ESG, mencionada 123 vezes ao longo de suas 41 páginas!
O subtítulo do documento é esclarecedor: “Recomendações do ramo financeiro para melhor integrar temas ambientais, sociais e de governança na análise, gestão de ativos e corretagem de seguros”. Ou seja, instituições financeiras falando para seus pares sobre a importância de fatores ambientais, sociais e de governança. Seu sumário executivo trazia uma ótima justificativa: “Empresas que desempenham melhor em relação a esses temas podem aumentar seu valor diante do acionista, ao, por exemplo, gerenciar riscos apropriadamente, antecipar ações regulatórias ou acessar novos mercados, enquanto, ao mesmo tempo, contribuem para o desenvolvimento sustentável das sociedades nas quais operam”.
Uma curiosidade: o Banco do Brasil foi uma das 18 instituições financeiras convidadas a participar da elaboração do documento.
As Três Grandes
A BlackRock, Inc. é uma das maiores gestoras de ativos financeiros de todo o mundo. Juntamente com a Vanguard Group e a State Street Global Advisors (que fez parte do grupo de trabalho do documento “Who Cares Wins”), formam o que o mercado chama de The Big Three, as maiores gestoras mundiais de fundos de investimentos.
De acordo com seus relatórios anuais de 2023, a BlackRock gere ativos da ordem de US$ 10 trilhões, a Vanguard, de US$ 7,6 trilhões, e a State Street, de US$ 4,1 trilhões. Juntas, elas somam US$ 21,7 trilhões entre fundos de pensão privados e estatais, fundos de doações de universidades e fundos corporativos. Até mesmo pequenos investidores compõem parcela significativa dos clientes dessas empresas financeiras.
Segundo os professores Lucian A. Bebchuk, da Harvard Law School, e Scott Hirst, da Boston University Law School, coletivamente elas possuem uma parcela significativa das empresas americanas de capital aberto. No seu estudo “Big Three Power And Why It Matters”, (Bebchuk e Hirst, 2022), os autores estimaram que apenas essas três financeiras possuem quase 25% dos votos nas assembleias anuais de acionistas das empresas listadas no índice S&P500 (indicador que acompanha o desempenho do mercado acionário norte-americano baseado na flutuação de preços das ações de 500 das maiores empresas daquele país, similar ao nosso Ibovespa). Isso mostra o poder de influência dessas três empresas nos destinos das grandes corporações dos EUA.
A Figura 4 apresenta em azul os 11 maiores PIBs do planeta, conforme relatório do Banco Mundial (2022). A eles foram acrescentados, em laranja, os valores dos fundos geridos pelas The Big Three. Sozinhas, elas ocupariam o terceiro, o quarto e o sexto lugares da lista. Somados, os fundos geridos por essas empresas comporiam o segundo lugar, superando o PIB (Produto Interno Bruto) da China.
A Politização do ESG
Antes mesmo de o conceito ESG ser formalizado, a preocupação com temas ambientais e sociais já estava no radar de um número crescente de empresas. A ideia se iniciou antes do final do século XX, e foi batizada de Responsabilidade Social Corporativa (RSC). A condenação do regime de apartheid na África do Sul e do trabalho infantil e a prevenção contra calamidades ambientais, como o vazamento do petroleiro Exxon-Valdez no Alasca, foram as ações corporativas precursoras.
Mais recentemente, na esteira da hiperpolarização da sociedade, o conceito de sustentabilidade tem sido usado como leitmotiv de desacordos entre extrema direita e estrema esquerda. Um lado afirma que o ESG é uma construção coordenada pelas instituições financeiras e defende uma hiper-regulamentação. O outro lado assegura que o ESG é parte da cultura woke que diminui a competitividade das empresas e a rentabilidade dos investimentos.
A situação chegou a tal ponto que, no final de 2020, o Departamento de Trabalho do governo dos Estados Unidos emitiu uma regulamentação (“Financial Factors in Selecting Plan Investments”) que atingiu os planos de aposentadoria regulados pela Lei de Segurança de Receita de Aposentadoria dos Empregados (ERISA), de 1974. Essa regulamentação determinava que “os fiduciários dos planos selecionassem investimentos e cursos de ação dos investimentos baseados apenas em considerações financeiras relevantes ao valor econômico do risco ajustado de um investimento ou do curso de ação de um investimento”.
Ainda que diretrizes como essa atinjam apenas os fundos de pensão regulamentados pela lei de 1974, ou seja, os privados, é uma realidade daquele mercado que os gestores dos fundos dos funcionários públicos sejam influenciados por elas. Isso levou a uma explosão de ações de governos estaduais para limitar ou desencorajar investimentos que considerassem fatores ESG.
Um artigo de David A. Cifrino (2024) publicado em janeiro deste ano na “Social Impact Review”, da Universidade de Harvard, informa, por exemplo, que o governo da Flórida determinou a retirada de investimentos de US$ 2 bilhões da BlackRock devido à sua visão e às políticas relacionadas a ESG. Além disso, os Procuradores Gerais de 19 estados enviaram uma carta à BlackRock acusando a instituição financeira de estar colocando a agenda climática à frente dos melhores interesses dos beneficiários.
A Visão da BlackRock
Larry Fink, CEO e chairman da BlackRock, foi um apoiador de primeira hora da inclusão dos fatores ESG nas decisões de investimentos. Em suas cartas anuais aos CEOs das empresas do S&P500 ao longo da última década, ele destacou a importância dos investimentos em empresas que valorizam aspectos ambientais, sociais e de governança. Suas declarações sobre sustentabilidade foram constantes e diretas.
- “Nós focamos em sustentabilidade não porque somos ambientalistas, mas porque somos capitalistas e fiduciários de nossos clientes”;
- “Cada empresa e cada setor será transformado pela transição para um mundo Carbono Neutro (“Net Zero”). A questão é: você vai liderar ou você será liderado?”
- “Os próximos 1.000 unicórnios não serão empresas de mecanismos de busca ou de mídias sociais; eles serão inovadores, sustentáveis, escaláveis – startups que ajudarão o mundo a descarbonizar e colocar a transição energética ao alcance de todos”;
- “Quando associamos os poderes dos setores público e privado, podemos alcançar coisas verdadeiramente inacreditáveis. Isso é o que devemos fazer para alcançar o Carbono Neutro (Net Zero)”.
Isso mudou em 2023. Naquele ano, durante uma mesa-redonda com o cochairman do The Carlyle Group no Aspen Ideas Festival, ele declarou: “Eu não uso mais a palavra ESG, porque ela foi totalmente transformada em uma arma… pela extrema esquerda e pela extrema direita”. Entretanto, Fink disse que eliminar referências ao ESG não mudará o posicionamento da BlackRock: a empresa continuará a conversar com as companhias que apostam em temas relativos à descarbonização, à governança corporativa e às causas sociais que serão endereçados por elas. No seu Relatório Anual de 2023, a empresa cita 86 vezes a sigla ESG e explicita os riscos associados a esse tema. Resumidamente, a empresa vislumbra riscos associados a (1) eventuais falhas de/com fornecedores-chave, (2) mudanças regulatórias nos EUA e em mercados internacionais e (3) a um “foco crescente de órgãos reguladores, autoridades, clientes e outras partes interessadas a respeito de assuntos ESG que podem impactar adversamente a reputação da BlackRock e o próprio negócio”.
E Oscar Wilde?
Oscar Wilde foi um escritor irlandês da segunda metade do século XIX. Escreveu clássicos como o romance “O Retrato de Dorian Gray” e a peça de teatro “The Importance of Being Earnest”. Inteligente, sagaz e extravagante como poucos, Oscar Wilde foi um dos mais importantes influencers da Londres daquela época.
Manter relações homossexuais era considerado um crime na Inglaterra e no País de Gales até 1967, na Escócia até 1980 e na Irlanda do Norte, até 1982. Por esse motivo, ele foi condenado a dois anos de prisão em 1895. Durante seu julgamento, Oscar Wilde foi questionado pelo procurador sobre o significado da expressão “o amor que não ousa dizer o nome”, último verso do poema Two Loves, de Lorde Alfred Douglas, seu amante.
Sua resposta brilhante termina com a frase “É assim que deve ser, mas o mundo não entende. O mundo o ridiculariza e às vezes coloca alguém no pelourinho por causa dele”. Essa frase pode ser facilmente transposta para o momento atual e aplicada à sustentabilidade.
É interessante notar que, atualmente, os EUA e os mercados internacionais seguem sentidos contrários com relação à sustentabilidade: enquanto nos Estados Unidos o tema segue sendo o centro de polêmicas crescentes, Reino Unido, Singapura, Hong Kong, Taiwan e Austrália indicaram intenção de apoiar as normas da International Sustainability Standards Board (ISSB) sobre a obrigatoriedade da emissão de conteúdos específicos nos relatórios de sustentabilidade e de clima, que devem ser emitidos junto com os relatórios financeiros periódicos.
O fato de a sigla ESG não ser mais falada não significa que seu conceito deixou de existir, que o assunto deixou de ser relevante ou que deixará de ser levado em consideração por uma parcela significativa do mundo corporativo, incluindo o financeiro. Essas entidades, governos e empresas compartilham da mesma visão que foi expressa pelo ex-Secretário Geral da ONU Ban Ki-moon em agosto de 2023, durante a Conferência Internacional Amazônia e Novas Economias em Belém (PA): “Não temos um plano B porque também não temos um planeta B”.
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